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As camadas de «A Substância» (2024) são múltiplas e tão abrangentes que o seu contexto, do qual nasce toda a narrativa, se confunde com a própria realidade. O filme retrata uma atriz de meia-idade, Elisabeth (Demi Moore), em fase decrescente décadas depois do seu êxito como estrela de Hollywood; também Demi Moore tem enfrentado dificuldades para reencontrar o sucesso mainstream, após ter sido um dos rostos mais icónicos do cinema nos anos 90 e início dos 2000. Este regresso pungente valeu o favoritismo de Demi Moore à estatueta de Melhor Atriz – com Fernanda Torres a ganhar força nas últimas semanas pela sua prestação em «Ainda Estou Aqui» (2024) – e mais quatro nomeações aos Óscares 2025: Melhor Filme, Melhor Realizador, Melhor Argumento Original e Melhor Caraterização.

«A Substância» (2024) é um exemplo notável de como a metalinguagem pode ser usada para expandir o impacto narrativo e temático de uma obra. A trajetória da protagonista, Elisabeth Sparkle, reflete as pressões e expectativas impostas às atrizes de Hollywood, funcionando como um espelho perturbador entre a ficção e a realidade. Demi Moore também enfrentou essa mesma marginalização na indústria, perdendo espaço à medida que ficou mais velha. Até a decisão de Demi, em interpretar esta protagonista, ecoa como um comentário sobre a própria carreira, e sobre como a indústria cinematográfica (e não só) descarta mulheres que ultrapassam uma certa idade, ou que não têm uma determinada aparência.
Além disso, a longa-metragem explora visualmente essa crítica, ao transformar a procura pela juventude num terror visceral, expondo (e ultrapassando) os limites físicos e psicológicos impostos por essa obsessão. Assim, mais do que contar uma história, o filme apresenta uma autorreflexão sobre o próprio cinema, utilizando a metalinguagem como uma ferramenta de crítica social. Tal como Elisabeth, substituída por uma mulher mais nova, é atraída por uma solução milagrosa para prolongar a sua juventude, muitas atrizes reais veem-se forçadas a lutar contra a invisibilidade imposta pela idade. Desta forma, «A Substância» (2024) funciona como um comentário ácido e visceral sobre a obsessão de Hollywood pela eterna juventude, corporizada no facto de Elisabeth começar a viver e a ser feliz a partir de Sue (Margaret Qualley).
Por seu lado, Dennis Quaid interpreta uma personagem que funciona quase como uma caricatura da própria indústria do entretenimento, sendo o estereótipo do homem poderoso e manipulador que utiliza as mulheres para seu próprio benefício. E que as descarta quando já não cumprem os padrões por si estabelecidos, refletindo igualmente as expectativas da audiência televisiva, que reage à valorização da beleza e da “perfeição” como critérios de sucesso.
A opção pelo género de terror, e pelo slasher, fortalece a crítica ao transformar a obsessão pela perfeição num espetáculo grotesco e violento. O corpo feminino, frequentemente objetificado, é deformado, mutilado e reconstruído como metáfora da pressão extrema para permanecer jovem e desejável. A violência gráfica e o body horror não são apenas uma questão de estilo, mas sim uma extensão visual da angústia psicológica de Elisabeth. «A Substância» (2024) utiliza o terror como linguagem e meio para expor o carácter cruel e desumanizante das normas estéticas e das expectativas impostas às mulheres no cinema e na televisão.
A realização de Coralie Fargeat, também responsável pelo argumento, é claramente uma das forças do filme, ao recorrer a elementos próprios do terror (a nível de cor ou de close ups tensos e desconfortáveis), e a jogos de câmara para intensificar a solidão, a pressão e a tristeza profunda que Elisabeth sente. A cena em que está deitada em posição fetal no chuveiro e a câmara se afasta, criando a ilusão de que o espaço ao seu redor se expande, apesar das paredes físicas permanecerem inalteradas, intensifica a perceção da audiência relativamente à solidão e impotência que sente. Este e outros enquadramentos, que desafiam a lógica espacial, ilustram como o estado emocional de Elisabeth distorce a sua perceção da realidade, transformando o ambiente num reflexo visual da sua deterioração psicológica.
Como referido, «A Substância» (2024) é uma obra inquietante que recorre ao terror para lançar uma crítica feroz e visceral à indústria do entretenimento e às suas exigências implacáveis. A interpretação de Demi Moore, que equilibra vulnerabilidade e força, é essencial para o sucesso do filme, e a “caricatura” de Dennis Quaid acrescenta uma camada de ironia e crítica ao poder desmedido na indústria. Combinando o horror psicológico com uma análise social profunda, «A Substância» (2024) é uma obra que incomoda, e também provoca uma reflexão necessária sobre as dinâmicas de poder, o envelhecimento e a objetificação das mulheres no cinema e na sociedade.
OSCARS 2025
VENCEDOR Oscar Melhor Caracterização