Há um aqui e agora neste “Here” (Aqui), 2024, realização de Robert Zemeckis, filme que podíamos apelidar de produção vagamente experimental dentro do sistema. Um aqui e agora que incorpora imagens reais e de síntese desde a pré-história até aos nossos dias, numa materialização em vinhetas que se articulam e multiplicam ao longo de cento e quatro minutos como se fossem marcos do quotidiano e instantes da vida real de um grupo de pessoas representativas de diversas gerações e pressupostos existenciais, inseridas num mesmo espaço e local. Tudo enquadrado desde o início na mesma perspectiva, similar a um plano de conjunto fixo, independentemente de ser registado no exterior ou no interior. Neste contexto, destaque especial para a sala de estar de uma casa cujo ambiente geral corresponde ao quadro familiar da classe média suburbana dos EUA. Na verdade, não podemos falar de um único plano fixo, mas sim de uma sucessão de planos onde prevalece a noção de raccord no eixo. Ou seja, imaginem que eram os realizadores do filme e que pediam ao director de fotografia que colocasse a câmara numa determinada posição. Definiam uma mesma escala para o enquadramento geral e, a partir desse momento, não mexiam mais no ponto de vista que queriam manter até ao fim, ou quase. No final dos finais, Robert Zemeckis cai na armadilha de não assumir a cem por cento a sua opção e faz uma rotação de cento e oitenta graus, muito breve, mas que fica na memória não necessariamente pelas melhores razões. De facto, desvenda mais do que devia ao sair do espaço interior para o exterior para “voar” até um ponto alto onde se descobre a fachada da casa onde os diversos segmentos da acção decorreram, dando-nos conta da pequena e aparentemente pacífica cidade que a circundava. Seja como for, esse movimento que integra e consubstancia a visão de um presente mais próximo não desfaz a fruição e valorização do que até ali se vira enquanto representação fragmentada do passado. De igual modo, a realização não consegue resistir a parar por brevíssimos instantes o percurso de um actor para o aproximar de uma escala próxima de um grande plano de modo a que possamos observar com mais pormenor, neste caso, o envelhecimento obtido por meios digitais, o aging-up, na sequência do efeito oposto, o chamado de-aging, a que os actores foram submetidos para parecerem mais novos. Dura segundos mas, como dizia o outro, não havia necessidade de ser redundante. No argumento, podíamos encontrar maior densidade ficcional, sim, mas os apontamentos históricos e as histórias pessoais de cada personagem funcionam dentro dos parâmetros concebidos para o ritmo narrativo que pedia desde o primeiro fotograma maior atenção para o lado “puzzle visual”, sobretudo se virmos esta obra num grande ecrã.


Passando por cima do estilo National Geographic, de algum modo patente no visualizar da evolução da Terra que caracteriza os breves minutos iniciais, quando entramos nos aspectos da evolução humana propriamente dita, sendo o filme americano, a produção só podia referir o óbvio, focando a atenção num grupo de figuras e personagens nativas, homens e mulheres das First Nations que por ali fixaram raízes muito antes da chegada dos Europeus. Neste caso, os povos Lenni-Lenape e Delaware. Depois damos um salto até aos dias da Revolução Americana e da Guerra de Independência. Neste período, o argumento destaca a figura controversa de William Franklin (1730-1813), filho bastardo de Benjamin Franklin (1706-1790), que lutou contra os ideais do pai mantendo fidelidade ao regime colonial imposto pela Coroa britânica. Foi o último governador de New Jersey entre 1763 e 1776. Mais um salto em frente e chegamos aos primeiros anos do Século XX, onde começamos a descobrir a construção da casa que vai servir de décor permanente e dominante ao longo do processo narrativo. Vemos os primeiros moradores, um casal constituído por uma dama inquieta e mal casada, senhora do seu nariz e muito, mas mesmo muito reaccionária relativamente a qualquer coisa que se apresentasse como inovadora ou passível de ser encarada com um fiozinho de aventura, como a aviação que ainda dava os primeiros passos e era paixão assumida do marido. De seguida, numa reviravolta que vai do oito ao oitenta, conheceremos outro casal, desta vez um inventor de cadeiras que mais adiante irão ser comercializadas com o nome que melhor assenta ao dito rapaz, La-z-Boy Recliner, (acreditem ou não, esta marca faz parte do imaginário Made in USA). Este vive com uma rapariga que podemos designar por inventora do dolce fare niente, ao melhor e mais básico estilo americano. Fartam-se ambos de ganhar dinheiro com a engenhoca e logo que podem dão corda aos sapatos rumo ao Oeste, a Califórnia como última fronteira do seu American dream. Depois, só quando se refere o final da Segunda Guerra Mundial iremos dar conta da entrada do casal que mais protagonismo vai merecer, antes do filho, interpretado por Tom Hanks e da nora, interpretada por Robin Wright, lhe roubarem as luzes da ribalta. Mas mesmo estes que Robert Zemeckis irá privilegiar nas suas contas ficcionais irão passar para um fugaz segundo plano quando novos inquilinos se instalam na casa que os dois irão abandonar na sequência de uma ruptura matrimonial, anunciada de modo surdo mas relativamente palpável. Neste caso, a casa será comprada por uma família de afro-americanos, cuja presença e comportamento acaba por definir os dias de confinamento da COVID-19, assim como os dias de crises contemporâneas em que germina a noção de que muito há a fazer para ultrapassar certos preconceitos raciais.

Diga-se que estas histórias, as que ficam coladas ao percurso individual e colectivo das famílias e das múltiplas personagens retratadas nas diversas épocas, não são contadas de forma linear, antes pelo contrário. No ecrã vemos sucessivos reenquadramentos proporcionados pela delimitação geométrica de quadrados e rectângulos que servem de portais gráficos inseridos na imagem principal para gerar uma espécie de diaporama entre a vida passada e presente, o AQUI que continuada e alternadamente se faz e desfaz. Por outro lado, se a objectiva não muda de ângulo, o fora de campo adquire uma dinâmica que o som ajuda a concretizar e credibilizar. Não só uma dinâmica, mas uma dimensão precisa que condiciona não poucas vezes o que se vê no interior das quatro linhas do enquadramento. Num momento preciso, um velho estratagema de quem gosta de subverter a rotineira dicotomia campo/contracampo será usado. Ou seja, na prática faz-se entrar em cena um móvel com um espelho que assim reflecte o que se passa por detrás do que habitualmente apelidamos a quarta parede, aqui e sempre o lugar onde está sentado o espectador.

Em suma, Robert Zemeckis quis fazer um filme igual a muitos outros mas conceptualmente diferente, inspirado pela novela gráfica “Here” de Richard McGuire. Para os apaixonados da banda desenhada será provavelmente uma delícia poder ler o livro e visionar um filme que procura captar o mesmo espírito de leitura que a obra matriz propõe. Poderão então sublinhar os pontos de contacto ou confirmar que literatura e cinema são linguagens distintas. Porém, seja qual for a conclusão, não será possível ignorar um filme como «Here», que alguns criticam com ferocidade, em grande medida por não corresponder ao modelo chapa um do cinema americano oriundo da grande indústria. De facto, até parece que essas vozes (não diria críticas, mas discordantes) pertencem aos que não vêem ou não querem ver para além do plano fixo que limita a sua visão redutora do cinema. Pela minha parte, não classifico «Aqui» como uma obra-prima, nem pouco mais ou menos. Mas nesta altura do campeonato sabe bem procurar as razões que levam um realizador veterano com provas dadas a divertir-se e a usar não o state of the art mas um pacote premium da parafernália sonora e imagética do CGI e dos efeitos digitais disponíveis, que noutras produções super-heróicas servem na maioria dos exemplos para gerar ruído e fogo-de-artifício. E estes, como se sabe, duram o que duram e desaparecem logo a seguir.       

Título original: Here Realização: Robert Zemeckis Elenco: Tom Hanks, Robin Wright, Paul Bettany, Kelly Reilly Duração: 104 min. EUA, 2024

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