[Estreia na Disney+]

A partir das reflexões trazidas pela leitura de João Maria Mendes e seu “Culturas Narrativas Dominantes”, o cinema encontra uma definição dramatúrgica para o buddy movie, o “filme de camaradagem”, que se baseia numa estrutura dramática conhecida como “1;1”. A matemática do pensador português, traduzida por teóricos da escrita fílmica como José Carvalho, baseia-se na lógica de duplicidade de conflitos. O que se passa com um dos camaradas há de se passar também com o outro, ou seja, dobram-se as “intrigas de predestinação”, expressão que define a missão a impelir o “herói” – no caso, “heróis”. É o que se encontrava nas comédias com Jerry Lewis e Dean Martin e com Jack Lemmon e Walter Matthau, para ficar cá apenas no âmbito hollywoodiano. Tal engenho também seve de bula para a filmografia indie, sobretudo a dos EUA, embora com uma aritmética menos cartesiana, menos causal. É o que se percebe em «A Verdadeira Dor» («A Real Pain»), dramedy que demarca (com elegância) a ambição artística de Jesse Eisenberg para uma carreira deflagrada a partir de inspiradas atuações. Agora, no posto de realizador, ele faz o postulado de João Maria Mendes ganhar um colorido agridoce – e afetivo.

Rodado ao custo de US$ 3 milhões, com direito a localizações na Polónia, a longa-metragem teve uma faturação de US$ 11 milhões às raias da conquista do Globo de Ouro de Melhor Ator Secundário por Kieran Culkin, o irmão do Macaulay de Home Alone (1990-92). A sua presença na série «Succession» (2018-2023), na Max, consagrou o seu trato fino com a ironia. Mas antes do troféu americano que lhe foi entregue, em janeiro deste ano, a longa de Eisenberg passou pelas telas de Sundance, e saiu de Park City, Utah, com o Waldo Salt Screenwriting Award.

Nomeado ao Oscar, em 2011, por «A Rede Social» («The Social Network»), Eisenberg atraiu os holofotes da produção independente ao viver um dos pedaços do fragmentado alter ego de Noah Baumbach em «A Lula e a Baleia» («The Squid and the Whale», de 2005). Passeou por projetos de orçamentos robustos como a fase Zack Snyder de Superman, entre 2016 e 2017, no papel de Lex Luthor, em que fez jus ao legado de Gene Hackman como o maior vilão das BDs. Emprestou ainda sua voz nervosa à ararinha Blue da animação «Rio» (2011), de Carlos Saldanha. O namoro com o grande cinema não fez com que se desapegasse das narrativas mais arriscadas, vide «Manodrome», indicado ao Urso de Ouro de 2023.
Um ano antes desse polémico estudo sobre a virilidade de John Trengove, Eisenberg impôs-se o desafio de filmar uma longa e rodou «When You Finish Saving The World» (2022), com Julianne Moore e Finn Wolfhard. Levou-o a Sundance e a Cannes, mas fez pouco ruído. Teve melhor sorte ao abordar suas origens judaicas e as memórias do trauma da II Guerra Mundial sobre o seu povo em «A Verdadeira Dor».


Amparado pelos planos estáticos (e de colorido retinto) da direção de fotografia de Michael Dymek, Eisenberg tem a chance de afinar o seu arsenal cênico e fomentar em Culkin uma fúria que detona o grande ecrã. Com enquadramentos rigorosamente lapidados (à altura dos olhos das suas personagens), ele constrói uma comédia dramática convulsiva sobre a reconexão dos primos David e Benji Kaplan.

Os dois são vividos pelo próprio Eisenberg e por Culkin. Afastados de uma convivência mais recorrente, embora mantenham-se unidos pelos sentimentos, eles decidem se reencontrar para fazer uma jornada pela Polónia da rota dos expurgos nazistas. Não parece a mais amena das propostas para um reencontro, mas existe um legado familiar por trás.

Por meio de gestos rudes e de uma incontinência verbal raivosa, Benji dá sinais de que há algo de muito errado consigo. Um histórico de tentativa de suicídio o precede, o que apavora David. O parente desperta nele um amor fraterno dos mais protetores. É esse amar que é posto à prova conforme os dois avançam.
A cada passo do percurso Benji magoa alguém, com sua verborragia “sincericida”, mas David não desiste dele, por vislumbrar naquela alma alquebrada reflexos do menino valente com quem conviveu na infância. Fiel aos desígnios do “1;1” de João Maria Mendes, o desastre que afeta um há de afetar o outro, numa bem-humorada crónica do ónus parental.    

Título original: A Real Pain Realização: Jesse Eisenberg Elenco: Kieran Culkin, Jesse Eisenberg, Will Sharpe Duração: 90 min. EUA/Polónia, 2024

[Texto publicado originalmente na Revista Metropolis nº114, Janeiro 2025]

ARTIGOS RELACIONADOS
Springsteen: Deliver Me From Nowhere

Há dois momentos chave para decifrar o núcleo duro dos pressupostos ficcionais do projecto «Springsteen: Deliver Me From Nowhere», 2025, Ler +

PREDADOR: BADLANDS – trailer

Realizado por Dan Trachtenberg (”Prey"), PREDADOR: BADLANDS marca o tão aguardado regresso da franquia ao grande ecrã, com uma história Ler +

Call My Agent Berlin: agentes no fio da navalha

Agentes em modo bombeiro: a cada cliente salvo, um novo incêndio começa. «Call My Agent Berlin», no Disney+, prefere humor Ler +

Too Much: romance em tempos de instabilidade emocional

«Too Much» é uma das mais recentes apostas da Netflix, uma comédia romântica criada por Lena Dunham e Luis Felber. Ler +

Imperfeitamente Perfeita – trailer

IMPERFEITAMENTE PERFEITA, da 20th Century Studios, foi escrito e realizado pelo vencedor dos prémios Oscar® e Emmy®, James L. Brooks Ler +

Please enable JavaScript in your browser to complete this form.

Vais receber informação sobre
futuros passatempos.