Ver «Emilia Pérez» (2024) após o anúncio das suas 13 nomeações aos Óscares de 2025, ficando a apenas uma indicação dos filmes mais nomeados de sempre, influencia, inevitavelmente, a experiência de visualização. A expectativa gerada por este reconhecimento, reforçada por outras distinções ao longo da temporada de prémios, pode levar a um olhar mais crítico sobre cada detalhe, da realização e atuações à execução do conceito musical. Assim sendo, a experiência pode oscilar entre o fascínio pelo risco artístico e a desilusão de quem esperava encontrar uma obra-prima incontestável.

Ironicamente, as probabilidades de vitória reduziram drasticamente ao longo das últimas semanas, não tanto por questões cinematográficas, mas devido a polémicas externas à obra. Declarações controversas de Karla Sofía Gascón (originalmente uma forte candidata ao Óscar de Melhor Atriz) e críticas à representação cultural desviaram o foco da sua qualidade artística para debates sobre imagem pública e autenticidade. Por conseguinte, aquele que parecia ser um dos grandes favoritos passou a enfrentar um escrutínio que deverá afetar o seu desempenho em termos de estatuetas douradas. Nas categorias principais, só Zoe Saldaña mantém o favoritismo como Atriz Secundária, sendo que «Ainda Estou Aqui» (2024) pode ter tido a vida mais facilitada na competição de Filme Estrangeiro.

Emilia Pérez

Introduções à parte, vamos ao que realmente interessa. «Emilia Pérez» (2024) é um filme musical com base de comédia criminal, realizado por Jacques Audiard. A narrativa acompanha “Manitas” del Monte, o poderoso chefe de um cartel mexicano que deseja abandonar o crime e mudar de género, tornando-se Emilia Pérez (ambos os papéis são interpretados por Karla Sofía Gascón). Para tal, recorre à ajuda da advogada Rita (Zoe Saldaña), uma profissional competente, mas marginalizada, pagando-lhe a peso de ouro para o ajudar a encontrar um médico que, discretamente, o ajude a concretizar o seu sonho. Depois de períodos conturbados, em que chegou a ponderar o suicídio, o chefe do crime tem tudo planeado para mudar completamente de vida. E assim faz.

A primeira pergunta que surge é: porquê um musical? A inclusão de números de dança em contextos inesperados, como uma sala de operações ou um evento de angariação de fundos associado a crimes horrendos, pode, à primeira vista, parecer “fora de tom”. Todavia, Jacques Audiard justifica esta escolha com a intenção de explorar a história de forma mais emocional e intensa. O género musical visa funcionar como um motor narrativo que amplia a complexidade das personagens, dá voz aos seus pensamentos mais íntimos e aprofunda a jornada de transformação da protagonista. No entanto, esta é uma decisão de estilo que, naturalmente, terá opiniões favoráveis e desfavoráveis: estamos perante um musical ousado ou um filme multicamadas que utiliza a música como um artifício sem a integrar plenamente na narrativa?

Para alguns, a abordagem reforça a carga emocional da trama e acrescenta uma dimensão poética à transformação de Emilia Pérez; para outros, a escolha pode soar dissonante, prejudicando o impacto dramático dos temas abordados.

A premissa de «Emilia Pérez» (2024) é ousada, abordando questões relacionadas com identidade, poder e transformação pessoal no contexto de um mundo violento e sem misericórdia. A ideia de um criminoso impiedoso, que domina um império baseado no medo e na violência, decidir deixar tudo para trás para vestir a “pele” que lhe serve, desafia as convenções do género musical e também do crime/ação. A transformação de “Manitas” não é somente uma mudança de identidade, mas um reflexo da luta interna por aceitação e realização pessoal, algo muito poderoso dado o ambiente em que a personagem vive, onde a masculinidade tóxica e a luta pelo poder, a qualquer custo, são a regra.

O equilíbrio entre a componente espetáculo e a profundidade emocional em «Emilia Pérez» (2024) é uma das grandes apostas do filme, mas, em alguns momentos, pode não ser totalmente alcançado. A fusão entre os números musicais exuberantes e as questões individuais e sociais enfrenta o desafio de manter a coerência narrativa e emocional. Enquanto as cenas de dança e música, com a sua grandiosidade, oferecem um espetáculo visual, podem, por vezes, diluir a carga dramática. É que a tentativa de incluir múltiplas dimensões da história e da experiência humana acaba por comprometer a intensidade emocional, resultando na impressão de que, ao querer chegar a todo o lado, o filme pode não conseguir chegar de forma convincente a nenhum. Mas deverá a nossa análise recair sobre o destino ou sobre o caminho, quiçá tumultuoso, para o alcançar?

Especialmente no México, as críticas a «Emilia Pérez» (2024) tiveram como alvo personagens estereotipadas e a representação da cultura local. Muitos consideraram que o filme recorria a uma visão superficial e exagerada da realidade mexicana, baseada em suposições e associada a uma construção redutora e simplista, tendo como resultado uma versão estereotipada do país. Não obstante, o que poderá ter faltado em diversidade cultural neste contexto, não falta no que à representação da personagem principal diz respeito. A personagem tem um impacto significativo na representatividade trans no cinema, ao ser protagonista de uma narrativa complexa e multifacetada, que vai além dos estereótipos habituais, permitindo que a experiência trans seja tratada de forma mais humana e profunda. A própria nomeação de Karla Sofía Gascón é histórica, mas penalizada pelas polémicas extra filme que se seguiram. Será que a atriz vai ser assobiada, ou ignorada, quando já testemunhámos casos como o de Will Smith? O ator subiu ao palco, discursou e foi aplaudido, minutos após subir ao palco para esbofetear o apresentador Chris Rock nos Óscares 2022.

No filme «Emilia Pérez» (2024), a procura constante pela reinvenção pessoal e pela afirmação de identidade, tanto no plano emocional como físico, reflete a complexidade da própria experiência humana. A longa-metragem, que combina géneros e desafia convenções, tem tanto de espetáculo como de jornada emocional, o que pode não agradar a todos, mas deixa, sem dúvida, uma marca. Além disso, a sua abordagem corajosa, nomeadamente em termos da representatividade trans no cinema, oferece uma nova perspetiva e a sua boa receção (inicial) abre portas à aposta em narrativas mais inclusivas e multifacetadas no futuro.

OSCARS 2025

VENCEDOR OSCAR de Melhor Atriz Secundária

VENCEDOR OSCAR de Melhor Canção Original

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