Consagrado por ‘Central do Brasil’, Walter Salles volta à ribalta internacional em diálogo com a literatura de Marcelo Rubens Paiva num comovente resgate da luta contra a ditadura.
Rodrigo Fonseca
No seu fim de semana de estreia no Brasil, entre os dias 7 e 10 de novembro, «Ainda Estou Aqui» levou cerca de 350 mil pessoas às 610 salas de projeção que ocupou ao redor de 189 cidades do seu país. Estima-se que a produção pilotada por Walter Salles, baseada no livro homónimo (e de tintas autobiográficas) de Marcelo Rubens Paiva, atinja, no mínimo, um milhão de espectadores até ao final do mês, quiçá antes de se configurar como um marco comercial nas bilheteiras latino-americanas. Representante oficial da sua pátria ao Óscar, o novo filme do realizador de «Central do Brasil» (que ganhou o Urso de Ouro da Berlinale, em 1998, e lutou pela estatueta de Hollywood em 1999) é um ímã de aplausos e lágrimas por onde passa desde o Festival de Veneza. Estreou por lá e saiu do Lido com o prémio de Melhor Argumento, dado a Murilo Hauser e Heitor Lorega. Deixou a terra das gôndolas ainda com o prémio humanista SIGNIS e o Green Drop Award.
“Minha geração chegou ao cinema após 21 anos de ditadura militar, de 1964 a 1985. Muitas histórias não puderam ser contadas durante esses anos de chumbo. Teria sido lógico abordá-las, mas o desastre do governo Collor no início dos anos 1990 nos obrigou a lidar com uma realidade imediata de um país novamente em crise. Daí, no meu caso, «Terra Estrangeira» e depois «Central do Brasil». Quando a extrema-direita começou a ganhar força no Brasil, ficou claro o quanto nossa memória dos anos de ditadura militar era frágil”, lembra Salles, em entrevista por e-mail à Metrópolis, para justificar seu interesse em revisitar o período em que sua nação esteve sob o domínio de generais, após um golpe de estado.
Duas décadas depois de singrar o imaginário cinéfilo na garupa de Che Guevara em «Diários de Che Guevara» (2004), Salles volta a pavimentar uma estrada de glórias com «Ainda Estou Aqui». Angariou aplausos em mostras na China, na França e no Canadá (onde brilhou no prestigioso TIFF). Houve choro aos litros durante suas projeções nos festivais de Nova York e de San Sebastián. Atribuíram-lhe láureas de júri popular na Mostra de São Paulo e no Festival de Vancouver. O seu enredo se concentra na cruzada da advogada e ativista Eunice Paiva (1932-2018), vivida por uma Fernanda Torres nas raias do esplendor. Ela trabalhou com Salles em «Terra Estrangeira» (1995) e «O Primeiro Dia» (1998), ambos codirigidos por Daniela Thomas.
Mãe de Marcelo Rubens Paiva (autor de “Feliz Ano Velho”, “Blecaute” e “Malu de Bicicleta”), Eunice empenhou-se anos a fio para dissipar as névoas da tortura e das práticas de desaparecimento dos ditos “subversivos” praticada pelo Estado brasileiro no seu jugo ditatorial, simbolizado pela farda verde oliva do seu exército. O motor da sua peleja foi o desaparecimento do seu marido, Rubens, engenheiro e ex-deputado que “sumiu” após ser levado para depor. Selton Mello, em atuação comovente, é quem assume esse papel. Em Veneza, Marcelo destacou emocionado como o ator foi capaz de reproduzir as características do seu pai.
“O que usamos do livro foi o conteúdo de suas memórias, que foi combinado com o de muitas outras pessoas, em especial das suas irmãs Vera, Eliana, Nalu e Babiu”, explicam Lorega e Hauser, por email. “Elas nos contaram suas versões de alguns momentos chave dessa história, e nos ajudaram a construir um retrato mais tridimensional de Eunice do que Marcelo faz no livro, a partir do seu ponto de vista como filho. Um exemplo disso é a cena que Babiu vê a mãe chorando depois de receber a notícia do assassinato de Rubens, quando entra em seu escritório para pedir a ela que conserte sua boneca quebrada”.
Foi em 1969 que Walter Salles conheceu os Paiva. “Eles vieram morar no Rio, cidade para onde eu voltava após cinco anos no exterior. Assim, passei parte da minha adolescência na casa que eles haviam alugado no Leblon e que está no centro de «Ainda Estou Aqui». Marcelo era um pouco mais novo do que eu”, conta o diretor, que contou com o habilidoso montador Affonso Gonçalves, parceiro habitual de Jim Jarmusch, Ira Sachs e Todd Haynes.
“Walter é um realizador que dá especial atenção à direção dos atores, está sempre atento ao elenco. Minha preocupação era dar tempo ao/à espectador/a para conhecer aquela família bem, convivendo com eles o bastante para sentir a falta de Rubens quando ele desaparece”, explicou Gonçalves, numa conversa a partir de uma ilha de montagem em Nova Iorque, onde edita «The Bride».
Depois de «Pela Estrada Fora» («On The Road», 2012), exercício de imersão na prosa beatnik de Jack Kerouac (1922- 1969), Walter ficou 12 anos distante das longas de ficção. Nesse hiato, lançou o .doc «Jia Zhangke, Um Homem de Fenyang» (2014). É pelas vias da literatura de Marcelo que ele regressa às veredas ficcionais, num drama ambientado em 1971, em 1996 e em 2014 – em saltos temporais elegantemente editados por Gonçalves. Produzido por Maria Carlota Bruno («No Intenso Agora») e Rodrigo Teixeira («A Vida Invisível»), «Ainda Estou Aqui» começa com o registro da vida apaixonada do clã Paiva. Eunice e Rubens vivem no Rio com as filhas e o filho numa rotina de dança, festa e casa cheia. Tudo muda para eles no dia em que Rubens é levado por agentes do governo à paisana. Eunice vai fazer de tudo para saber o destino do seu marido. Fernanda Montenegro entra em cena interpretando Eunice em idade avançada, numa sequência que rasga qualquer coração. Um dos pontos mais fortes do filme é a meticulosa fotografia de Adrian Teijido. No elenco coadjuvante, Carla Ribas e Dan Stulbach têm atuações luminosas.
- Premiado nos Globos de Ouro 2025 MELHOR ATRIZ (DRAMA) – Fernanda Torres
EXCLUSIVO EM CINEMAS A 16 DE JANEIRO
Fotos: Alile Dara Onawale