Vencedor da Palma de Ouro em Cannes em 2024, «Anora» (2024) foi conquistando – timidamente, mas com fulgor – a crítica e o público. Com realização de Sean Baker, que já nos habituou a retratar histórias de figuras marginais da sociedade (Tangerine, The Florida Project), o filme subverte o romance clássico ao apresentar uma protagonista que ecoa, de forma crua e realista, a icónica Vivian Ward, interpretada por Julia Roberts em «Pretty Woman: Um Sonho de Mulher» (1990). Mas, ao contrário da fantasia tradicional, «Anora» (2024) explora e expõe a complexidade e a contradição presentes na vida de uma mulher que navega entre a precariedade e a promessa de um futuro improvável, com tonalidades de dureza e brutalidade. Não só física, mas sobretudo emocional.

Com uma ascensão meteórica no mundo da sétima arte, a longa-metragem somou seis nomeações aos Óscares: Melhor Filme, Melhor Atriz, Melhor Realizador, Melhor Ator Secundário (Yura Borisov), Melhor Argumento Original e Melhor Edição. Ainda que as suas hipóteses estejam longe de garantir uma noite de sonho, as indicações reforçam o impacto do filme e coroam uma trajetória impressionante, marcada também pela vitória de Mikey Madison nos BAFTA e pelo prémio de Melhor Filme nos Critics Choice Awards.

A premissa é simples. Uma stripper de Brooklyn, Anora/Ani (Mikey Madison), vê a sua vida ter uma reviravolta inesperada quando Ivan/Vanya (Mark Eydelshteyn), filho de um oligarca russo, a pede em casamento. O que começou como mais um encontro profissional transforma-se no bilhete dourado para o futuro de luxo e estabilidade que Anora nunca ousou sequer imaginar. De repente, tem acesso a uma mansão impressionante, roupas e joias deslumbrantes, e uma rotina onde o lazer substitui a sobrevivência. Tudo parece alinhar-se para um conto de fadas moderno, mas a realidade tem outros planos.

«Anora« (2024) move-se entre a comédia e o drama social, explorando, com ironia e crueza, as relações humanas e as desigualdades de poder que são perpetuadas pelo tempo e pelo espaço. O realizador e argumentista Sean Baker utiliza o humor não como um alívio para os momentos mais pesados, mas como uma ferramenta que evidencia as dinâmicas de classe e as ilusões de mobilidade social, colocando Anora no centro de um jogo onde afeto e interesse se confundem. A trama adota um ritmo quase bipolar, alternando entre leveza e uma tensão crescente, reforçando a ideia de que o dinheiro e o estatuto social podem tanto abrir portas como prender e castrar. Com personagens genuínas e diálogos ácidos, a obra desconstrói a noção de conto de fadas e desafia a audiência a refletir sobre os limites entre o sonho e da realidade.

Sem recorrer a julgamentos morais, o filme oferece uma análise das personagens em toda a sua complexidade, revelando tanto virtudes como contradições. Anora (assim como as pessoas que orbitam à sua volta) não é moldada por estereótipos simplistas, mas sim por camadas que se vão revelando na sequência dos acontecimentos, desafiando expetativas e ideias preconcebidas. O argumento reflete essa ambivalência, equilibrando momentos de humor (por vezes negro) com diálogos que carregam uma melancolia latente, estabelecendo um retrato profundamente humano. A dinâmica entre as personagens é fluída, alternando entre o afeto genuíno, os interesses disfarçados e a brutalidade, reforçando a ideia de que as relações são sempre mais complexas do que aparentam.

Igor (Yura Borisov) é um elemento essencial para a concretização do conceito central do filme. Inicialmente apresentado como uma personagem possivelmente violenta, que acompanha Garnik (Vache Tovmasyan) na tentativa de descobrir se Ivan realmente se casou, Igor é aconselhado a acalmar-se, o que antecipa um caráter imprevisível. No entanto, à medida que os acontecimentos se sucedem, ele começa a revelar uma faceta inesperada, contrariando as expectativas iniciais. A complexidade de Igor torna-se evidente quando se distancia, progressivamente, da figura de mero capanga, e partilha um lado mais emocional (num jogo entre a interpretação de Yura e a câmara de Baker).

Nada em «Anora» (2024) é linear, e o final é prova disso mesmo. Tendo o cuidado de não revelar em demasia neste texto o que acontece, podemos, ainda assim, reforçar que a conclusão da narrativa vai além de uma simples resolução, “desmanchando” a personagem principal e expondo as suas fragilidades. A dificuldade de Anora em comunicar de maneira tradicional reflete não só a sua vulnerabilidade, mas também as limitações emocionais e sociais que a definem ao longo da história. Em vez de apresentar um final esperado ou confortável, Baker opta por um desfecho que deixa à vista a complexidade da personagem e a impossibilidade (?) de uma conexão autêntica ou “normal”, desafiando o público a refletir sobre as nuances da vida e das relações humanas.

OSCARS 2025

  • VENCEDOR Oscar Melhor Filme
  • VENCEDOR Oscar Melhor Realização
  • VENCEDOR Oscar Melhor Atriz
  • VENCEDOR Oscar Melhor Argumento Original
  • VENCEDOR Oscar Melhor Montagem
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