A premissa de «Tangerine» não podia ser mais simples: Sin-Dee Rella (Kitana Kiki Rodriguez) sai da prisão e o seu maior desejo é reencontrar o namorado, que é também o seu chulo. Em conversa com a melhor amiga, Alexandra (Mya Taylor), descobre que enquanto esteve encarcerada, o seu tão amado Chester a traiu com uma mulher “à séria” (geneticamente falando) e… branca. A partir daí, o seu foco passa a ser apenas um – encontrar a vilã da história, Dinah, e o traidor do seu coração e honra (ironicamente falando), Chester.
Num jogo entre planos abertos e sequências rápidas, a história desenrola-se durante um único dia, que se prolonga pela noite fora, e é na luz crepuscular que nos perdemos e somos arrebatados. Sob um céu de tons alaranjados, a cidade dos Anjos, das estrelas e do glamour, mostra o que de mais cru se passa nas ruas marginais abaixo de Hollywood Sign. Misturando as nuances de um entardecer quente da noite de Natal com a cor envergada pelas personagens, Sean Baker, o realizador, editor e argumentista, navega sem complexos numa história que parece ter um destino certo, mas que subtilmente vai parando nos diversos apeadeiros de uma realidade paralela corrompida.
Como que subvertendo o slogan da cidade e do seu culto ambicioso como um local de magia, onde tudo pode acontecer, «Tangerine» foca-se naqueles que fazem parte de um sonho que não se concretizou: os emigrantes que servem os outros e que serão eternamente os outsiders, os transexuais que lutam por uma normalidade que é a deles mas que não nasceu com eles, e as prostitutas de rua que continuam à mercê dos humores e fetiches sexuais dos clientes. Num tom de comédia dramática, Sean Baker acaba por prestar um contributo social a todos aqueles que, no aceleramento e dispersão das suas vidas, continuam a passar ao lado deste “ecossistema”, que tem tanto de fora das regras como de único.
Uma das grandes surpresas de Sundance em 2015, «Tangerine» destacou-se, no entanto, por outros motivos. Devido ao baixo orçamento, foi opção do realizador filmar a maioria das cenas com um iPhone 5s. Foram necessários três smartphones, uma app, um estabilizador e lentes anamórficas. Isso e uma boa dose de imaginação e savoir-faire. No entanto, a mestria de Baker vai mais além quando convida a banda sonora a fazer parte da ação e quando consegue que as atrizes, Kitana Kiki Rodriguez e Mya Taylor, sejam exímias e autênticas nos seus papéis. Aliás, ambas colaboraram no argumento de Sean Baker e Chris Bergoch com as suas próprias histórias e experiências.
Devido aos constrangimentos orçamentais, «Tangerine» é a prova de que para se contar uma boa história não é preciso muito dinheiro ou uma produção megalómana. É, sim, necessária uma visão, uma vontade suprema para ultrapassar obstáculos e acreditar que, afinal, tudo pode acontecer na cidade dos Anjos.
«Tangerine» é, no final de tudo, um filme sobre o que faz de nós humanos: o equilíbrio entre as emoções gratificantes e as ações que nos prejudicam enquanto espécie, e uma verdadeira homenagem ao poder da amizade e da linguagem universal do amor, a nossa eterna salvadora.
Título original: Tangerine Realização: Sean Baker Elenco: Kitana Kiki Rodriguez, Mya Taylor, Karren Karagulian Duração: 88 min. EUA, 2015
[Texto originalmente publicado na Revista Metropolis nº40, Junho 2016]
https://www.youtube.com/watch?v=ALSwWTb88ZUhttps://whttps://www.youtube.com/watch?v=ALSwWTb88ZUww.youtube.com/watch?v=XHOmBV4js_E