«Sirât» é um dos melhores filmes de 2025, ninguém sai indiferente desta alucinante experiência cinematográfica. É um espectáculo transe que conquista a alma e o coração. É um drama humano onde se procura um elo ausente que dê sentido a uma família e acaba-se por descobrir uma nova família num caminho sinuoso entre o céu e o inferno, onde se sublinha o lado efêmero da vida, onde o êxtase pode se transformar no terror num piscar de olhos.


A obra foi realizada por Oliver Laxe, que sempre foi muitíssimo bem recebido em Cannes. «Sirât» é a sua terceira obra consecutiva a ter aclamação e premiação no maior festival de cinema do mundo. Um punhado de actores amadores traz o inigualável realismo e Sergi López debita uma interpretação monstruosa onde as palavras não fazem jus à sua dilacerante agonia.  


Neste filme, o deserto é sinónimo de busca pela transformação num clima de rave tribal à beira do fim do mundo. O espectador viaja à boleia de um grupo de nómadas que celebram à sua maneira o inconformismo pelas normas e vivem na liberdade e sem fronteiras entre a música, a amizade e o LSD. Eles vivem com as suas marcas numa aventura física e metafísica. «Sirât» é a dimensão simbólica e o pleno poder do cinema e das imagens cheias de ambiguidade.

A entrevista que se segue é um atestado do génio de Oliver Laxe, um dos realizadores mais promissores da actualidade. Não me admiraria ver comparações com nomes como Denis Villeneuve e Christopher Nolan. A Metropolis sentiu que estávamos a dialogar com alguém muito especial, humilde e genuíno e partilhou o seu dom com o mundo com o seu monumental «Sirât». 

Lembra-se do momento em que decidiu ser cineasta?

Oliver Laxe: Lembro-me que no liceu tínhamos uma disciplina opcional chamada imagem e som. Eu tinha 15 anos, mais ou menos. E lembro-me que fizeram como o primeiro guião, e gostei muito do sabor de imaginar imagens, como se eu já estivesse muito habitado por certas imagens de Corunha, que era a cidade onde eu morava, nos arredores dessa cidade. E posso dizer que atualmente, a minha sensibilidade não mudou, daquele guião. Ou seja, no fundo, esse guião captou o ritmo inato. Digamos que a minha sensibilidade é com a imagem e o som, que é muito sensorial, muito sinestésica. E que, no final, concordo com o que foi dito, que a poesia é uma questão de ritmo inato, que cada poeta tem o seu ritmo, o seu tempo, a sua coisa.

Como surgiu a ideia para este filme?

Oliver Laxe: Olha, é muito difícil dizer como surgiu uma ideia. Eu sou um cineasta de imagens, então no início há sobretudo imagens, muitas imagens. E depois havia muitas intenções. A morte, para mim, configura a minha psicologia, a minha espiritualidade, e acho que a de todos. E então, acho que é esse o tema, a morte, ou a morte como contribuição para a vida. Então, eu queria fazer um filme em que transcendêssemos um pouco a morte. Em «Mimosas», tentei, e aqui, bem, tive outra oportunidade de me confrontar com esse tema, que acho que é como transcender a morte ou a transcendência da morte, ou o tema, acho. Eu gosto muito de dizer que em muitas culturas existe uma tradição que é colocar na cabeça um turbante que é uma mortalha. Diz-se mortalha em português. A mortalha é ateia, em galego. A mortalha é a teia que te vai envolver quando morreres.

Digamos que é a teia com que te vão enterrar, vão embalsamar-te. Digamos que nessas sociedades, nessas culturas, faziam o que na nossa cultura também havia, que eram cerimoniais para meditar sobre a morte.

Eles chamam isso de “morte na cabeça” para meditar sobre a morte. Parece-me muito saudável como, ao confrontar-se com a angústia da morte, alguém tenha menos angústia na morte ou entenda a morte como uma companheira, como uma portadora de vida, etc. O que eu queria, na minha ideia principal, portanto, para responder-lhe, era: eu mesmo colocar essa mortalha na cabeça e convidar o espectador a colocar a câmara.

Sirat não é apenas um filme, é uma experiência sensorial. Como é passar do papel à magia e o encantamento em que o Olivier deixa de ser apenas um realizador e passa a ser um alquimista?

Oliver Laxe: Estou surpreendido, porque vieram muitos psicoterapeutas, um psicanalista disse-me que os seus pacientes estão a trabalhar com o «Sirât». Estão com eles e dizem: “Olha, vi o «Sirât», passou um mês, tive de pensar no meu pai, tive de pensar no meu filho, tive de pensar no meu trabalho”. Parece-me muito interessante como, efetivamente, não é apenas um filme, mas uma cerimónia cinematográfica. Insisto, no que comentava antes, em colocar este turbante na cabeça. Acho que o cinema permite um lugar onde ainda podemos viver experiências fortes que não vivemos na nossa vida, experiências edificantes. Pode ser, verdadeiramente, uma passagem, o próprio cinema. Ou seja, o nível de identificação que temos com os personagens, o nível de pertença e a força das imagens, como elas podem nos afetar, a geometria das imagens, as proporções das imagens, podem nos afetar de uma maneira muito profunda.

E eu, além disso, tenho a força de proteger a fragilidade das minhas imagens.

Quando penso nas minhas imagens, ou como dizem os criativos, são imagens que estão muito ligadas ao inconsciente e também ao inconsciente coletivo. Então, eu tenho a força de poder. Eu tinha a força de poder proteger as fragilidades dessas imagens que estão ligadas ao meio inconsciente, ao inconsciente coletivo, que sobrevivem durante todo o processo criativo até o final. É muito difícil que essas imagens sobrevivam, porque os produtores, os próprios realizadores, no final, trabalham tantos guiões que todas essas imagens ganham semântica, dizem coisas, servem para explicar algo, para contar algo. Então, é como se as imagens fossem encaixotadas, perdem força, já não têm todas essas dimensões de comunicação das imagens. Então, bem, são uma sinistra de imagem, com todas essas consequências.

Para mim, este Sirât é o «Easy Rider» do século XXI, é a apresentação de uma contracultura. Como foi esse trabalho de pesquisa, dessa comunidade de nómada?

Oliver Laxe: Yupi! Era nossa intenção. porque queremos dialogar com o nosso tempo.

Olha, contracultura. Não estamos nos anos 70, mas parece que estamos. Olha, a verdadeira contracultura seria se o ser humano fosse capaz de transcender-se. Isso é contra cultural. E ter fé, hoje em dia, é contra cultural. Ter a vocação de transcender-se espiritualmente isso é contra cultural. Então, não sei se os “ravers” são ou não. Enfim, acho que estamos num momento histórico em que é muito difícil transcender. Mas, de qualquer forma, há pessoas que conseguem transcender-se, uns através da oração, outros através da música ou das drogas, enfim, não quero entrar nesse assunto. Eu gosto de ver um ser humano que tem essa intenção de transcendência, isso me comove, mas, de qualquer forma, independentemente de o ser humano conseguir ou não, está claro que, para alcançar a transcendência, é preciso aceitar a sua imperfeição e a sua fragilidade. E acho que os personagens do meu filme podem fazer isso porque não vivem numa neurose, vivem ligados à realidade. Ou seja, vivem bem enraizados na sua fragilidade, mostram a sua fragilidade, mostram as suas feridas de guerra.

Parece um primeiro passo para a maturidade. Isso é contracultura. Atualmente, num momento em que, por exemplo, a Europa participa numa espécie de neurose total?

Nós, europeus, achamos que somos pessoas equilibradas, nós, ocidentais, achamos neuroticamente que somos pessoas equilibradas? Parece-me que é precisamente contracultural mostrar como, no fundo, estamos profundamente feridos. E tudo bem, digo sem dramatismo. Sim. Digo sem dramatismo, parece um primeiro passo para a maturidade.

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