Travelling lateral ao longo das margens densamente povoadas de uma megacidade, Bombaim, ou como agora gostam de lhe chamar, Mumbai, capital do Estado de Maharashtra (União Indiana) que alberga para cima de vinte e oito milhões de habitantes num espaço dividido entre os muito ricos que ostentam os seus privilégios de classe e os muito pobres. Pelo meio os remediados que não deixam de ser os danados da Terra, pessoas quase sem voz e sem nome numa imensa multidão que circula a qualquer hora do dia e da noite pelas ruas, pelos mercados, a pé ou nos superlotados autocarros e comboios. Como se diz no filme, mesmo que vivam na valeta são homens e mulheres que não parecem autorizados a protestar, antes pelo contrário, supostamente são incentivados a aceitar a sua “sorte”. Neste contexto, a cineasta Payal Kapadia pegou na vida de um pequeno grupo de enfermeiras para nos contar as suas histórias pessoais a partir de manifestações quotidianas de maior visibilidade, como as rotinas profissionais, mas igualmente com base nos momentos mais íntimos e secretos de cada uma. Para melhor definir e articular esta opção com o conjunto da ficção, a realizadora acaba por concentrar a sua e a nossa atenção na dupla Prabha (Kani Kusruti) e Anu (Divya Prabha), colegas que vivem juntas num modesto apartamento, deixando uma outra colega, Parvaty (Chhaya Kadam), numa posição lateral ao percurso das protagonistas, mas com uma finalidade precisa, que será materializada nas sequências finais de «All We Imagine As Light» («Tudo O Que Imaginamos Como Luz»), 2024. Nelas veremos como o apoio moral que será prestado a Parvaty, viúva deserdada por não possuir documentação que comprove o seu direito a habitar a casa onde sempre viveu com o marido, não vai resolver as contrariedades que afligem esta mulher, servindo, antes de mais, como pretexto para o espoletar de uma força regeneradora capaz de dar a Prabha e Anu a necessária energia para mudarem igualmente a agulha do seu destino. Contrariavam assim o espírito de fatalidade existencial que as impedia de assumir os seus mais profundos ou angustiados desejos. Tudo afinal se pacifica através de uma espécie de idílio e revelação num lugar afastado da grande cidade, Ratnagiri, situado junto da costa onde desponta uma outra luz que não as do negro polvilhado de sombras que domina uma boa parte das sequências iniciais. Idílio, porque finalmente Anu (a mais nova e aparentemente mais rebelde) podia ali encontrar-se sem grandes esquivas com o seu namorado muçulmano, Shiaz (Hridu Haroon), e isso em Bombaim constituía por si só um problema. Para além do mais, ficava livre das insinuações de natureza vincadamente sexual e dos mexericos hipócritas de algumas enfermeiras que criticavam a sua alegada liberdade de costumes. Revelação, porque Prabha, mulher casada mas desconsolada, ao recuperar a vida e o fôlego a um náufrago encontrado na costa por pescadores, vai misteriosamente encontrar no corpo desse homem a alma perdida do marido há muito ausente, aquele com quem casara sem experimentar as emoções de um grande amor. Resta dizer que ela e Parvaty são ambas de algum modo viúvas, uma de um morto e outra de um vivo “renascido” por breves momentos num milagre concebido por obra e graça do realismo poético, do lado mágico e do maravilhoso da linguagem cinematográfica.

Nada disto porém nos faz esquecer o percurso realista imediatamente anterior. De algum modo, as diferenças e contrastes entre a primeira e a derradeira parte do filme acentuam o retrato amargo mas preciso de uma inserção verdadeira no quotidiano onde a composição das personagens se sustenta sequência após sequência. Muitos são os grandes planos das actrizes enquadrados para nos conceder margem de manobra de sobra para que a nossa imaginação prefigure nos rostos e olhares o que elas enquanto personagens querem fazer ou não com a sua vida. Existe por outro lado um clima documental em «Tudo O Que Imaginamos Como Luz» que sublinha a dialéctica entre o interior da urbe, a sua complexidade impossível de reproduzir pela mera encenação, e o espaço aberto, semi-aberto na verdade, da praia e da Natureza onde os quatro actores/personagens citados acabam juntos numa comunhão que até ali parecia improvável. Tudo servido por uma fotografia em que os apontamentos de luz, sempre a luz, serão usados para nos dar vontade de procurar a verdade por detrás do que não vemos no escuro, a ilusão maior de a encontrar onde ela menos se manifesta.
Belo exercício de cinema que mereceu o Grande Prémio da Competição Oficial no Festival de Cannes de 2024.
Título original: All We Imagine as Light Realização: Payal Kapadia Elenco: Kani Kusruti, Divya Prabha, Chhaya Kadam Duração: 118 min. França/India/Holanda/Luxemburgo/Itália/EUA/Bélgica/Suíça, 2024
ALL WE IMAGINE AS LIGHT – TUDO O QUE IMAGINAMOS COMO LUZ
6 de junho | 22h TVCine Edition
[Crítica originalmente publicada a 19 de Dezembro, 2024]

