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20.000 ESPÉCIES DE ABELHAS

20.000 ESPÉCIES DE ABELHAS

Em «20.000 Espécies de Abelhas» Aitor é uma criança de oito anos, que rejeita sinais de afeto, que não deixa cortarem-lhe o cabelo e que gosta de ter as unhas pintadas. Mas é também a criança que se esconde atrás de uma árvore para poder fazer xixi de pé sem que ninguém veja. Na preparação de uma viagem de verão em família, somos convidados a entrar na dinâmica familiar de uma mãe com três crianças que vai visitar a sua própria mãe a uma aldeia perdida nas montanhas bascas. A partir daqui, são as situações corriqueiras do dia-a-dia, num contexto de férias, que nos trazem uma viagem de descoberta de Aitor, ou Cacau para os mais próximos, perdido naquela que é a sua verdadeira identidade de género.

“Porque Deus me fez assim?”, “Aconteceu algo de errado durante a gravidez?”, “Porque não posso usar um vestido?” Estas são apenas algumas das questões que vai colocando, tentando incessantemente encontrar uma resposta para esta “não identificação” com o corpo em que nasceu. Vemo-lo a rejeitar momentos que impliquem despir-se à frente dos outros e a querer fazer parte de grupos onde só as meninas podem brincar, acompanhamo-lo na felicidade de trocar de fato de banho com a sua nova amiga ou de vestir um fato de sereia, e vibramos por ele quando sente a liberdade de ser quem é com aqueles que o veem na sua essência e não o seu corpo ou o seu género.

A pequena atriz Sofía Otero é incrível neste papel, o que não passou despercebido ao júri da Berlinale, no qual arrecadou o Urso de Prata para Melhor Atriz Principal, assim como no Festival Internacional de Hong Kong ou no Guadalajara International Film Festival. Mas também Patricia López Arnaiz, no papel de mãe de Aitor, nos oferece uma performance natural e sem esforço, mas muito intensa. De resto, todo o elenco convida-nos com generosidade a uma viagem profunda aos vários papéis que fazem parte desta família: a avó que sempre perdoou as traições do avô, a tia que cuida das abelhas e que vê antes de todos os outros verem, o irmão que encobre e acarinha todos os comportamentos de Aitor, a irmã mais velha teenager que também reclama a atenção dos pais. Sentimo-nos parte da família e reconhecemos os diversos lugares onde muitas vezes também nos encontramos enquanto membros da nossa.

A realizadora basca Estibaliz Urresola Solaguren escreveu e realizou «20.000 Espécies de Abelhas» a partir de uma notícia que assolou o País Basco em 2018, quando um jovem transgénero de 14 anos tirou a sua própria vida, numa tentativa de que a sociedade olhasse de outra forma para o que ele, e tantos outros, estão a passar. Deixou uma carta, para que se criasse maior consciência sobre esta questão, mas também maior aceitação. A realizadora partiu para esta história com um olhar também ele de esperança, essencialmente para as famílias que vivem esta questão no seu seio e não sabem como reagir.

Com imagens que apelam a um universo natural, de paisagens deslumbrantes, Solaguren embala-nos numa natureza viva do País Basco, com cascatas incríveis, montanhas a perder de vista e com a ajuda das abelhas leva-nos pelo caminho da sabedoria natural, do poder curativo das abelhas e pelas similidades do sistema das abelhas com as próprias famílias e comunidade. Pegando numa herança religiosa, a realizadora materializa o poder da fé e a grandiosidade do milagre quando a nossa intenção é mais forte do que aquilo que está planeado para nós. Afinal, “Deus fez-nos perfeitos”.

Que respostas pode ter um ser que chegou a este mundo há tão pouco tempo e que apenas sente que algo não deve ter corrido bem nesta transição entre a barriga da mãe e a realidade do seu dia-a-dia? A solução será morrer para nascer de novo? No final, não foi preciso morrer, mas há um renascimento que se estende para lá da morte física.

«20.000 Espécies de Abelhas» é sobre identidade e diversidade; é muito sobre a descoberta de quem nasceu num corpo diferente, mas mais sobre a forma como alguém de fora olha para a transição (de género); é sobre a essência que prevalece em relação ao corpo; é sobre o poder da família e o julgamento do certo e do errado, quando, na verdade, não existe nada de errado, apenas diferente do que se instituiu ser o certo. É sobre o poder da fé, da convicção, dos desejos que se deitam ao fogo e da inteligência das abelhas. Poderá a realidade mudar? As abelhas dizem que sim… e nós acreditamos.

Título Original: 20.000 Especies de Abejas Realização: Estibaliz Urresola Solaguren Elenco: Sofía Otero, Patricia López Arnaiz, Ane Gabarain Duração: 125 min. Espanha, 2023

[Texto publicado originalmente na Revista Metropolis nº96, Agosto 2023]