Organizado pela Agência de Curta-Metragem, em parceria com dezenas de instituições espalhadas por todo o país, a 8ªedição de “O Dia Mais curto 2020” teve início no mês de dezembro com múltiplas sessões, O primeiro momento-chave é a estreia, no dia 17, da sessão única, com bilhete próprio, dedicada à obra cinematográfica de Regina Pessoa, no cinema Ideal, em Lisboa e no cinema Trindade, no Porto. Finalmente, dia 21 de Dezembro, no solstício de Inverno, realiza-se o segundo momento decisivo: o evento central de “O Dia mais Curto 2020”, com dezenas de sessões por todo o país e nos mais variados espaços de exibição, cumprindo as rigorosas medidas de segurança impostas pela pandemia do Covid 19.
Conversámos com o responsável máximo do evento, Miguel Dias, diretor da Agência de Curta-metragem, um dia antes da abertura (30 de novembro) sobre a preparação da mostra em tempos de incerteza e os 5 programas do evento: “Novas Curtas Portuguesas”, “Curtas do Mundo”, “Curtinhas para todos” (para maiores de 6 anos), “Amiguinhos (para maiores de 3 anos) e o programa dedicado, exclusivamente à cineasta Regina Pessoa, com as suas quatro curtas-metragens de animação: «A Noite» (1999), «História Trágica Com Final Feliz» (2005), «Kali, o Pequeno Vampiro» (2012) e «O Tio Tomás, a Contabilidade dos Dias» (2019), espelho dum universo único, servido por uma técnica, estrutura e modo de produção próprios. A fechar, discutimos o caminho a trilhar pelo evento e a nota crítica sobre o fechamento do mercado de exibição nacional e as dificuldades em penetrar nos chamados “multiplexes” com iniciativas ligadas a este formato, tão caro ao cinema português.

Como foi preparar a edição deste ano depois da pandemia que se abateu sobre nós e das consequências terríveis para a atividade cultural e cinematográfica?
MIGUEL DIAS: Preparar a edição foi tarefa igual em relação aos anos anteriores, com o tipo de ações que é preciso fazer e o tipo de sessões que queremos. Em termos de preparação é a mesma forma que fizemos no ano passado. Talvez, a partir de algum momento, seja trabalho, mas faz-se na mesma. Apesar de ser possível fazer as coisas da mesma forma, depois os resultados são distintos. Foi como disse, “Há consequências desastrosas para as atividades culturais e para as atividades cinematográficas” e este evento não foge à regra!
Porquê?
MIGUEL DIAS: Porque nós contamos com parcerias com instituições (associações, cineclubes, autarquias) em cada uma das localidades que aderem ao evento: temos um parceiro para organizar as sessões e muitos deles cancelaram, tiveram de cancelar. Por exemplo, havia uma sessão hoje (dia 30 de Novembro) apesar de ainda não estarmos no dia 1 (arranque oficial das sessões). Por ser mais conveniente essa instituição já tinha pedido para realizar uma sessão no dia de hoje. E foi uma das que, obviamente, teve de ser cancelada! Por causa destas medidas de restrição de circulação entre concelhos que nos afetam a todos, não é?
Claro que sim
MIGUEL DIAS: Portanto, há menos localidades, menos sessões, menos parceiros… e como é evidente, a seguir a isso, haverá menos público como há menos público em todos os eventos culturais, nem que não fosse pelo fato das pessoas se poderem sentar em lugares alternados, logo a lotação é inferior e depois ainda há o receio das pessoas que não quererem participar em eventos onde se encontrem outras pessoas. Tudo isso torna muito difícil a situação para as atividades culturais, como é para muitas outras que toda a gente sabe. Neste domínio não estamos sozinhos mas é evidente que as atividades culturais por pressuporem ajuntamentos de público são aquelas que se vão ressentir mais que outras, mas também menos que outras, se calhar.
Apresentando aqui para os nossos leitores o evento deste ano: como é que vai decorrer o ciclo de cinema que se inicia agora no início de Dezembro e culminará no dia 21, com múltiplas iniciativas ao longo do país? Que novidades traz o evento para este ano?
MIGUEL DIAS: A mesma estrutura dos anos anteriores em que nós propomos quatro programas a todas as instituições que se queiram associar e ainda (a possibilidade) de participar com programação própria, distinta dos referidos programas – aquilo que nós chamamos de programa associado. A ideia inicial seria um pouco utópica em que cada instituição aderente organizasse as suas próprias coisas com as curtas que desejassem. Claro que nós sabemos que não é assim tão fácil ter acesso a filmes para toda a gente ou pelo menos um programa com qualidade e, então, nós fazemos as propostas – partem de nós – a ideia era que cada um participasse…

Por iniciativa própria?
MIGUEL DIAS: Com programação própria, e se calhar em locais mais informais – sempre incentivando projeções em locais informais. Embora as salas de cinema sejam os locais por excelência para ver filmes e há- de ser sempre assim queríamos que este evento fosse algo mais espontâneo, e que toda a gente pudesse participar, mesmo que em sítios diferentes do que salas de cinema. Mas, neste momento, se mesmo em salas de cinema é difícil, o que fará mesmo noutros locais que não têm a possibilidade de organização das cadeiras e dos lugares para fazer face às necessidades colocadas pela pandemia.
Em suma, essa é a base?
MIGUEL DIAS: A base das sessões de cinema seja com a nossa programação e propostas seja com as programações por iniciativa própria é esta. Como sempre, propusemos a canais de televisão: este ano propusemos ao Cinemax, programa de curtas que já passa há muitos anos na RTP2. Neste caso a aposta será mais na produção nacional e em filmes internacionais premiados; a TVCine e Séries, no seu canal TV Cine Edition vai ter uma programação especial e na Internet, temos a possibilidade de ver curtas em plataforma online.
Há uma diversidade na programação e curtas para todos os gostos. Quais são os programas deste ano?
MIGUEL DIAS: Os programas são sempre dois generalistas: um com filmes portugueses e outro com filmes internacionais. E mais dois direcionados a crianças. Estes são os programas que são propostos a todos os possíveis aderentes mas este ano fizemos um quinto programa exclusivo apenas ao cinema Trindade, no Porto, e cinema Ideal, em Lisboa que chamámos “Quatro janelas discretas para o mundo de Regina Pessoa”.
Fale-nos desse programa.
MIGUEL DIAS: É como se fosse uma estreia: no dia 17 de Dezembro, quinta-feira, dia habitual das estreias cinematográficas, tem estreia simultânea nos dois cinemas. Uma espécie de estreia diferente, desde logo pelo género e pela duração, porque estas 4 obras da Regina Pessoa que correspondem à sua obra cinematográfica (tirando encomendas e outros projetos paralelos) tem a duração de apenas 37 minutos! Portanto, em 20 anos de carreira cinematográfica temos uma obra que dura 37 minutos! Porquê?
Tem a ver com o género Animação…
MIGUEL DIAS: Sim, é um processo lento, tem de ser fabricado imagem por imagem e, sobretudo, neste tipo de produções não temos dezenas de animadores como têm os filmes dos grandes estúdios, onde as equipas são enormes e é um tipo de produção em série, o contrário do modo de produção da Regina Pessoa.
É um modo de produção quase artesanal
MIGUEL DIAS: Aqui estamos a falar de artesanato e é evidente que a qualidade e o fascínio dos filmes dela também vivem muito desse tempo que dura a produção e da técnica que ela utiliza: visualmente procura reproduzir nas animações que faz técnicas de gravura. Por exemplo, no primeiro filme “ «A Noite» (1999), se pensarmos na técnica daquele filme é incrível, porque é um filme de animação feito em placas de gesso. Depois, no «História Trágica com Final Feliz» (2005) já fez gravura em papel e, finalmente, nos filmes mais recentes, feitos em co-produções com o National film Board do Canada, foram os próprios técnicos que desenvolveram, por processos digitais próprios para a realizadora portuguesa trabalhar de forma a ter uma produção, apesar de tudo, menos demorada, a esse nível.
Mas ainda assim estamos a falar de processos digitais que imitam o aspeto visual das gravuras. Nesta Técnica, para além do aspeto estético, há uma forma de retratar as coisas de muito mais expressiva: a gravura vive muito da luz e da sombra, dos contrastes – e é isso que encontramos muito bem feito nos filmes dela. São trabalhos extremamente minuciosos e também é isso que provoca o fascínio das suas obras.

E a temática dos filmes da Regina?
MIGUEL DIAS: Para além da coerência estética, tem um universo muito próprio. Todos os filmes dela têm uma componente autobiográfica, como por exemplo, este último, «O Tio Tomás e a Contabilidade dos Dias» (2019), mas mesmo o primeiro, «A Noite» (1999), tem a ver com os seus medos de infância, medo do escuro e da noite e até, nesse filme, convidou a própria mãe para cantar aquela cantiga de embalar. Portanto, este universo próprio e esta componente autobiográfica constituem sempre histórias sobre personagens que são
Singulares?
MIGUEL DIAS: Singulares e inadaptadas ao nosso mundo. Sentem que têm alguma coisa que é diferente das outras pessoas e essa forma de encarar a diferença. Existe esse interesse pelas pessoas que são diferentes. Mais até pelas caraterísticas interiores, emocionais.
Essa foi uma das razões, ou a principal, que vos levaram a fazer esta programação dedicada à obra da Regina Pessoa?
MIGUEL DIAS: E foi num momento em que ela acaba de fazer aquele que é para mim o seu melhor filme até hoje, este último, «O Tio Tomás e a Contabilidade dos Dias» (2019). Esteve quase a entrar nos nomeados para os Óscares e agora está nos finalistas do European Film Academy (EFA).
A Regina é uma cineasta decisiva na evolução do cinema de animação em Portugal, não é?
MIGUEL DIAS: Pelo menos na sua repercussão internacional, juntamente com mais duas ou três pessoas, com certeza que é. Não é a única, há outras pessoas, mas é daquelas pessoas que em termos de presenças e festivais de cinema, não há nenhum caso no cinema português ou ninguém que tenha os filmes em tantos festivais em todo o mundo como a Regina, e com tantos prémios.
Até mesmo a escolha da Regina como membro da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood…
MIGUEL DIAS: Por exemplo! Não há muitos. Neste caso existe uma estreia (dos filmes da Regina Pessoa), depois o filme fica em cartaz como se fosse uma longa-metragem que esteja em exibição. Pelo menos uma semana! Portanto fica até ao dia 23 de Dezembro. Se correr bem até ainda fica mais uma semana. Seria bom sinal.
Fica em complemento doutra obra em cartaz?
MIGUEL DIAS: Não, não. Como uma pequena sessão de 30 e tal minutos. Como uma pequena sessão com um bilhete a condizer.
No Trindade e no Ideal, não é?
MIGUEL DIAS: Sim. Nós já temos feito experiências dessas. Passou, por exemplo, o filme do Eugéne Green, «Como Fernando Pessoa salvou Portugal» (2018) em sessões autónomas, em lugar de passar antes duma longa-metragem. Neste caso aquele filme é a sessão! Quis fazer este tipo de aposta de exibição que me parece bem: se alguém quiser e tiver meia hora ou três quartos de hora disponíveis para ver uma sessão de cinema que se calhar não teria tempo se fossem duas horas, tem ali uma oportunidade, com um preço mais económico.
Esta é a 8ªedição do “Dia mais curto do ano”. Pode-se dizer que já é uma aposta consolidada, a realização deste evento? Ou ainda há muito caminho para trilhar?
MIGUEL DIAS: O caminho para trilhar não depende tanto de nós. A estrutura é aquilo que nós queremos. Aquilo que há de diferente, em relação ao que poderia ser, tem muito a ver com a exibição independente em Portugal! Em relação à média dos países europeus, temos muito poucas salas de exibição independente: quando digo independente, são as salas urbanas, cinemas de bairro, de centro da cidade, com uma sala ou às vezes duas, que têm uma programação que privilegia o cinema nacional, o cinema europeu ou o cinema de autor. Numa das primeiras edições tentámos fazer “O Dia Mais Curto” como experiência em dois multiplexes e aí correu muito mal! Não é um tipo de programação, de cinema para esses complexos…

Mas não será por falta de aposta, de marketing ou de promoção dos próprios exibidores?
MIGUEL DIAS: Claro! Isto implica tudo isso. Estas pequenas salas que nós vemos no centro da cidade, daquelas que os franceses chama de “arte e ensaio” são salas em que os proprietários e os programadores têm uma ligação muito forte com o seu público, com os espetadores e promovem as obras doutra maneira. Uma relação de muito maior proximidade com os cineclubes, por exemplo, com os seus associados enquanto os multiplexes não! Não têm tanto essa relação de proximidade com os espetadores…
E depois se calhar falta também apostar um pouco mais, ou não?
MIGUEL DIAS: Faltam mais instituições ligadas ao cinema e mais salas independentes para poder expandir um bocado mais o nosso conceito. Porque, de facto, não funciona nos multiplexes e estamos a falar de 90% do mercado de salas comerciais em Portugal. Penso que é sobretudo por aí. De resto, penso que vamos aproveitando ao máximo outro tipo de projeção, e é isso que temos de fazer: nas televisões, na Internet, nas escolas, até no Metro do Porto…
Já sei que apostam também aí!
MIGUEL DIAS: Nos ecrãs dos veículos. Vamos criando estas formas de fazer passar a mensagem. A ideia é não ficar refém, apenas, da forma tradicional da sala de cinema mas expandir as formas de apresentação.
Portanto, vamos ter um mês de programação (mês de dezembro). Têm planeado alguma extensão ao longo do ano de 2021 em termos de programação, noutras salas?
MIGUEL DIAS: Não! Por um lado a questão da pandemia e das incertezas não termina aqui. Mas depois, também, há um lado prático: nós nunca fizemos isso porque a maior parte destes filmes não detemos os direitos de exibição. Fazemos um acordo com os produtores ou com os distribuidores apenas para este período do evento. E não é um acordo que se prolongue pois isso teria outras implicações.
Consultar a agenda das sessões em: www.odiamaiscurto.curtas.pt
Artigos relacionados:







