Há muito que esperávamos o momento em que Terrence Malick deixaria as suas experiências abstratas – que tomaram lugar depois de «A Árvore da Vida» (2011) – para regressar à verdade essencial do seu cinema tal como o conhecemos desde «Os Noivos Sangrentos» (1973). E ainda que não seja o absoluto esplendor desse momento, «Uma Vida Escondida» representa, sem dúvida, o reencontro de Malick com algo que tinha deixado lá atrás: a capacidade de elaborar a busca pelo transcendente na matéria mais concreta da vida, isto é, num quadro humano real, com personagens que existem enquanto seres de complexidade dramática, para lá de uma dança mais ou menos frívola com a câmara…
«Uma Vida Escondida» é um filme genuinamente interessado em dar a conhecer uma vida não contemplada pela história com H maiúsculo. A vida do agricultor austríaco Franz Jägerstätter (1907-1943), um objetor de consciência que no início da Segunda Guerra Mundial se recusou a integrar as tropas de Hitler, moralmente convicto de que ao aceitar fazê-lo estaria a colaborar com uma causa injusta, votada à morte de inocentes. Uma recusa que lhe valeu, a ele e à família, a ostracização por parte dos membros da sua aldeia.
Com a cumplicidade do ator alemão August Diehl, Malick filma o calvário deste homem simples e honesto a partir do modo como a harmonia da sua existência se vai desintegrando. Do cultivo da terra, na sublime paisagem montanhosa de St. Radegund, ao silêncio no interior da igreja, Homem-Deus-Natureza é a trindade cuja face o cineasta americano enseja contemplar. Aqui estamos mais próximos de «Dias do Paraíso», «A Barreira Invisível» ou mesmo de «O Novo Mundo», e mais distantes de «A Essência do Amor», «Cavaleiro de Copas» e «Música a Música» – estes últimos, filmes em que Malick cedeu à vacuidade da linguagem dos anúncios de perfume (recorde-se que fez mesmo um para a Guerlain, com Angelina Jolie…).
Colocando-o assim no panorama do trabalho do realizador, «Uma Vida Escondida» é o filme do meio-termo, onde o realizador veterano recupera a sua voz e consegue firmá-la num olhar monumental sobre o amor e a integridade humana, mesmo que ainda se sinta uma câmara viciada pelas coreografias dos três filmes anteriores. Contudo, desta vez, a “febre” estilística, em vez de absorver tudo, dá espaço à reflexão política. A certa altura, diz-se: “Chegará o tempo em que os homens deixarão de lutar pela verdade. Limitam-se a ignorá-la.” Não estamos já nesse tempo? Eis o que importa. É bom ter Malick de volta.
[texto publicado na revista Metropolis nº 74 em Fevereiro de 2020]