Estandarte da língua portuguesa (pós-colonial) nas telas do mundo, Glauber Rocha (1939-1981) distinguia as palavras “cineasta” e “realizador” sob uma ética demiúrgica. “Realizador é quem realiza filmes e cineasta é quem cria universos”, disse o artista por trás de «Terra em Transe» (1967), famoso por um olhar alegórico, a refutar uma sinonímia que abre precedentes novos para se analisar um contador de histórias como o texano Wesley Wales Anderson. Quando se passa em revista a exposição dedicada a Wes Anderson na Cinémathèque Française, em Paris, que segue até 27 de julho, percebe-se que ele deveria ser classificado, segundo os critérios glauberianos, como “cineasta”. A razão: cada filme que faz é um tijolinho numa construção visual uniforme a retratar, como um mural vivo, a excentricidade dos personagens (quase sempre homens com ar malandro) que se encontram num balanço de suas vidas. É assim desde o milionário metido a tutor de adolescente de «Rushmore» (1998), no qual lançou Bill Murray como seu muso mais recorrente. Todas as longa-metragens que fez utilizam o mesmo coletivo de atores e atrizes que lhe servem de fetiche, como Bryan Cranston, Jeffrey Wright, Scarlett Johansson, Willem Dafoe, Benedict Cumberbatch e Rupert Friend. Toda essa turma regressa em «O Esquema Fenício» [«The Phoenician Scheme»], uma produção de US$ 30 milhões que valeu a Wes a sua quarta indicação à Palma de Ouro. Há sempre um protagonista, apesar dele trabalhar sempre com uma ciranda de figuras com foco sazonal na sua narrativa. Benicio Del Toro, com quem rodou o hilariante «Crónicas de França do Liberty, Kansas Evening Sun» (2021) é desta vez o astro rei.  

O seu desempenho é de rachar a rir no papel do industrial Anatole “Zsa-Zsa” Korda, mesmo nas sequências em que há tristeza no âmago, numa triagem da solidão e da falta de pertença social, dois assuntos recorrentes na autoralidade temática de Wes. Antes de chegar até ela, a sua plateia precisa atravessar a cordilheira plástica da sua autoralidade formal, até entender a fina conexão desta com os temas que preocupam o artista por detrás de experimentos cómicos que se pavimentam sob uma direção de arte cirúrgica. As longas que fazem lembrar, na forma, um livro ilustrado infantojuvenil, daqueles estruturados como pranchas gráficas, das quais figuras de papel emergem das páginas, num efeito tridimensional de artesania editorial. Não é à toa que a Cinémathèque Française pode armar uma galeria de criações do diretor, na qual estão bonecos e instalações usadas por ele nas animações «O Fantástico Sr. Raposo» (2009) e «Ilha dos Cães», pelo qual recebeu o Urso de Prata de Melhor Direção na Berlinale 2018.

À luz da fotografia dionisíaca de Bruno Delbonnel, que condensa o colorido plural dos cenários e objetos num diapasão brando, outonal, «O Esquema Fenício» amplia a assinatura autoral de Wes sem abrir novos caminhos de investigação. Ele joga no estádio onde é craque (a seara da paternidade alquebrada) a explorar um assunto (versões de si mesmo) que ganhou ónus em «Asteroid City» (2023) e na curta que lhe valeu um Óscar, em 2024: «A Incrível História de Henry Sugar» (hoje na Netflix). A montagem frenética de Barney Pilling é que parece mais lívida do que os seus trabalhos mais recentes, o que dá à saga de Zsa-Zsa uma frescura adiconal. É óbvio que a maturidade de Wes conta, associada a um intérprete de talento gigante como Del Toro.

Cabe ao Ennio Morricone do Presente, o francês Alexandre Desplat, orquestrar com a sua elegância jazzy uma reconstituição mucho loca da década de 1950. Nela, Zsa-Zsa coleciona tentativas de assassinato contra a sua pessoa pelo seu modo nada ortodoxo de conduzir os negócios. Enquanto está inconsciente, ele passa ao Umbral bíblico e, na corte marcial do Além, é julgado por um tribunal divino, que analisa a sua dignidade para entrar no Céu. Lampejos do seu encontro com as autoridades divinas costuram toda a fita, estruturada mais como aventura do que como dramédia. Essas visões ou experiências de “quase morte” levam-no a crer que precisa consertar o seu relacionamento com sua única filha, a noviça católica Irmã Liesl (Mia Threapleton). Ele pede para a jovem abandonar a Igreja e assumir os seus negócios, a fim de cuidar também dos seus irmãos, entre eles um malandreco que tem uma besta. Korda e Liesl têm uma interação difícil, visto que o ricaço mandou a jovem embora para um convento aos cinco anos de idade. Há rumores de que ele assassinou a mãe da jovem, além de tê-la alijado do seu tio, a raposa velha chamada Nubar (papel de Cumberbatch).

Essa tentativa de conciliação se dá pelo meio do tal Esquema Fenício do título da película de Wes. A transação em questão consiste em reformar a infraestrutura da Fenícia com o trabalho abusivo de escravos. Nesse processo, Liesl conhece Bjørn, um entomologista norueguês contratado por Zsa-Zsa para ser o seu tutor e, posteriormente, o seu assistente administrativo. É Michael Cera quem assume esse papel, numa atuação em estado de graça. Entra ali para a família Wes, que hoje se impõe como dínamo numa linhagem de real… ops!… de cineastas que têm lastro de plasticidade, como Michel Gondry e Tim Burton. 

Título original: The Phoenician Scheme Realização: Wes Anderson Elenco: Benicio Del Toro, Mia Threapleton, Michael Cera, Willem Dafoe, F. Murray Abraham, Donald Sumpter, Rupert Friend Duração: 101 min. EUA/Alemanha, 2025

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