Em termos cinéfilos, como é a nossa passagem de 2023 para 2024? Com muitos filmes em destaque na chamada temporada dos prémios, visando, em última instância, os Óscares de Hollywood. Em qualquer caso, apetece dar uma resposta alternativa: mudamos de ano sob o signo de Wim Wenders e com chancela de uma das “pequenas” distribuidoras independentes (Alambique) que continuam a ter um papel fundamental na diversificação da oferta cinematográfica. Assim, no espaço de três semanas, as salas portuguesas revelam os dois títulos com que, no passado mês de maio, o cineasta alemão esteve presente no Festival de Cannes: «Dias Perfeitos» (14 dezembro) e «Anselm» (4 janeiro).
São sintomas exemplares da mundividência de Wenders, criador cuja visão sempre soube integrar os elementos geográficos e simbólicos dos lugares por onde tem passado a sua vida e o seu trabalho. Afinal de contas, do período inicial na Alemanha — lembremos a deambulação magoada de «Ao Correr do Tempo» (1976) — até ao novo e muito japonês «Dias Perfeitos», a sua filmografia é também um fascinante mapa das diferenças humanas, com algumas passagens por Portugal, incluindo «O Estado das Coisas», vencedor do Leão de Ouro de Veneza em 1982.
Para lá dos seus filmes que pertencem ao imaginário de várias gerações — penso, sobretudo, em «Paris, Texas» (1984) e «As Asas do Desejo» (1987) —, Wenders nunca menosprezou uma dimensão experimental que o leva a aproximar entidades aparentemente inconciliáveis. «Anselm», por exemplo, sobre o pintor e escultor Anselm Kiefer, é um exemplo dessa ousadia, a par de «Pina» (2011), dedicado à coreógrafa Pina Bausch. São documentários sobre dois artistas invulgares… e são também documentários a três dimensões!
Por um lado, Wenders contraria o cliché do marketing segundo o qual o 3D é um aparato técnico apenas vocacionado para as aventuras protagonizadas por super-heróis e afins. Por outro lado, a tridimensionalidade desses filmes não é um banal efeito visual, mas sim um dispositivo formal que se adequa, ponto por ponto, à enigmática elegância dos movimentos concebidos por Pina e ao carácter monumental das obras de Anselm. Para Wenders, o cinema é também uma arte que está sempre a reinventar-se através do diálogo com as outras artes.
[Texto publicado originalmente na Revista Metropolis nº101, Inverno 2023]
https://www.youtube.com/watch?v=dBzs7MIoHo0