Elemental

ELEMENTAL

ELEMENTAL

Desde do final dos anos 1990, o diretor nova-iorquino Peter Sohn vem trabalhando nas equipas de animação de filmes de culto como «O Gigante de Ferro» (1999) e o oscarizado «Ratatouille» (2007) acrescentando um toque dramatúrgico particular no uso de cores e na investigação de fraturas afetivas que se reestabelecem a partir da lógica da conciliação. Dirigiu «A Viagem de Arlo» (2015) à cata de uma convivência possível (e afetuosa) entre um menino selvagem e um Apatosaurus fofo. A convergência entre duas culturas vistas por prismas inusitados – o humano é feral e o dinossauro é civilizado – estabeleceu a sua reputação como um antropólogo do cinema animado que é capaz de promover uma etnografia devassadora de populações com regras de conduta supostamente estabelecidas. É esse o procedimento que guia «Elemental», filme de encerramento da seleção oficial de Cannes em 2023. É um dos trabalhos mais ousados da Pixar-Disney no uso das ferramentas psicanalíticas que norteiam as regras do argumento dessa grande marca audiovisual, em sinergia desde «Toy Story» (1995).

A direção de arte do filme é exuberante evocando duas tradições distintas do cinema da Índia, ainda que se passe num mundo imaginário no qual entidades feitas das forças primais da Natureza (água, fogo, ar e terra) convivem numa cidade ameaçada pelo rompimento de uma barreira. As tais tradições são o realismo de Satyiajit Ray (na “Trilogia de Apu”) e o frenesi de Bollywood. Elas são tão incompatíveis quanto a água, substância que forma o jovem Wade (na voz de Mamoudou Athie), e o fogo, a argamassa do corpo de Ember (Leah Lewis). Ela pode ser a dona da loja de produtos ígneos do seu pai, embora o seu coração esteja longe do comércio. As batidas do seu miocárdio vão se descompassar ainda mais com a declaração assinada por Wade, no seu trabalho como inspetor sanitário, acerca das más condições de conservação e de funcionamento da loja que Ember gerencia. Caso os papéis que ele carimbou parem nas mãos de autoridades públicas, o trabalho da jovem terá que fechar as portas.

Ao aperceber disso – e se aperceber encantado pelas flamas da jovem -, Wade passa por cima do seu sentido de dever, ajuda Ember e aproxima-se dela, iniciando um romance improvável numa análise superficial. A máxima do dramaturgo Jean Anouilh aplica-se aos dois: “Existe o amor, é claro, e existe a vida, a sua inimiga”. Ao longo de 101 frenéticos e líricos minutos, o que Peter Sohn, na direção, tentará fazer é contrariar o aforismo de Anouilh e mostrar que nas combinações mais inesperadas podem brotar da estima.

Nessa inversão nada matemática na ordem dos fatores, o cineasta faz uma antropologia cheia de emoção e lirismo subvertendo indícios de traços culturais próximos da sociedade indiana e da civilização americana. Combina-se o que há de mais potente em ambas. Resta o amor, que entra como vetor de reconfiguração de um mundo ardente.

Título Original: Elemental Realização: Peter Sohn Elenco: Leah Lewis, Mamoudou Athie, Ronnie Del Carmen, Shila Ommi, Wendi McLendon-Covey Duração: 101 min. EUA, 2023

[Texto publicado originalmente na Revista Metropolis nº96, Agosto 2023]