Filme maldito, radical e explosivo, «À Prova de Morte» pode bem ser o objeto que mais anticorpos criou a muita gente, no interior da obra de Quentin Tarantino – e que o próprio ludicamente trata como a ovelha negra –, mas é sem dúvida uma das suas quintessências. Realizado no âmbito do projeto «Grindhouse», que concebeu com Robert Rodriguez (e no qual este último assinou «Planet Terror»), aqui revisita-se o espírito dos filmes de baixo orçamento dos anos 70, com todos os deliciosos detalhes físicos da má qualidade – saltos de imagem, película riscada… – que uma nostalgia rafeira sugere. Dividindo o brilhante “exercício formal” em duas partes, nas quais um antigo duplo de Hollywood, interpretado pelo impecável Kurt Russell, persegue grupos de jovens mulheres para as apanhar de surpresa na estrada com a velocidade selvagem do seu carro de assalto, Tarantino sabe muito bem como olear a metalinguagem até meter prego a fundo.
E o que é louvável neste aparente golpe de estilo é que não se trata de mera cosmética ao serviço de uma reprodução do passado. Tarantino fala para as audiências de agora (sendo de 2007, a mensagem continuará sempre atual) com o mesmo desencanto com que Stuntman Mike pára de falar da sua carreira de duplo perante uma pequena assembleia absorta, no balcão do bar, para perguntar: “Vocês conhecem alguma das séries ou atores de que vos acabei de falar?” Não há uma alminha que responda que sim… É, pois, neste vácuo geracional que «À Prova de Morte» inscreve a sua energia e fibra reacionária, trabalhando artesanalmente a brutalidade no asfalto. Com uma perna amputada (pormenor buñueliano) a voar pela janela de um carro, Quentin acena à Hollywood que já não existe. Um delírio de mestre.
Título original: Death Proof Realização: Quentin Tarantino Elenco: Kurt Russell, Zoë Bell, Rosario Dawson, Rose McGowan, Mary Elizabeth Winstead, Eli Roth Duração: 127 min. EUA, 2007
[Texto originalmente publicado na Revista Metropolis nº70, Agosto 2019]
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