Há filmes que chegam tarde e ainda assim parecem nascer no tempo certo. «Lavagante», de Mário Barroso, é um deles: estreia-se a 2 de outubro, precisamente no dia do centenário de José Cardoso Pires, o escritor cuja obra lhe serve de base. Um gesto simbólico, claro, mas, sobretudo, um choque frontal com a nossa memória coletiva. Porque este não é apenas mais um filme português sobre a ditadura — é um dos melhores exercícios de cinema nacional dos últimos anos, capaz de unir literatura, história e emoção sem cair no panfleto nem na monotonia.
O projeto começou com António-Pedro Vasconcelos, que adaptou o conto “Lavagante, Encontro Desabitado” e assinou o argumento. Morreu sem o ver filmado. Paulo Branco, teimoso como só ele, segurou o barco. E Mário Barroso, herdeiro da tradição de unir poesia visual a rigor histórico, pegou na câmara e concluiu o que parecia perdido. O resultado é um filme duro, elegante, necessário e, ao contrário do que o pessimismo habitual nos leva a acreditar, é capaz de atrair público para as salas.
O enredo parece simples: Cecília (Júlia Palha), estudante de Arquitetura, apaixona-se por Daniel (Francisco Froes), médico oposicionista ao regime. À volta deles, a sombra da PIDE, a brutalidade policial e as manifestações estudantis de 1962 na Cidade Universitária. Mas Cardoso Pires nunca foi homem de histórias lineares e Barroso soube preservar isso. A narrativa é uma teia de enganos, espionagem, sedução e medo, em que a metáfora do lavagante — o animal que engorda a presa até devorá-la — se aplica tanto ao regime como às próprias personagens, consumidas por forças maiores do que elas.

O filme respira Cardoso Pires: frases cortantes, ironia ácida, uma Lisboa captada no seu cinzento opressivo, mas também na beleza clandestina de cafés, casas de praia e becos onde se conspirava contra Salazar. Há quem diga que filmar ditaduras é sempre fácil porque o mal já está pronto. Aqui não: o mérito está em dar densidade a cada gesto, em mostrar que amar podia ser também um ato de resistência, e que a traição — íntima ou política — tinha sempre o sabor metálico do perigo.
O elenco é soberbo. Júlia Palha tem talvez a melhor interpretação da sua carreira até agora: Cecília é, ao mesmo tempo, sedutora e enigmática, cúmplice e vítima, lavagante fêmea que atrai para a armadilha. Francisco Froes dá a Daniel uma vulnerabilidade rara, um homem dividido entre a paixão e a convicção política. Nuno Lopes, como sempre, rouba as cenas em que aparece, Diogo Infante oferece uma frieza calculada que arrepia, e Tomás Alves, Leonor Alecrim e Rui Morrison completam um conjunto que prova que o cinema português tem intérpretes à altura da sua literatura.
Visualmente, «Lavagante» é de uma beleza sombria. Barroso, que acumula realização e direção de fotografia, filma com a luz certa do medo: interiores sufocados, ruas que parecem sempre vigiadas, um país em que até o sol de verão carrega o peso da censura. Há ecos de Visconti e de Oliveira, mas, sobretudo, há a marca pessoal de um cineasta que filma a História com a consciência de que ela ainda lateja no presente.

E aqui chegamos ao essencial: «Lavagante» não é só um tributo ao passado, é um murro no estômago do presente. Em tempos de amnésias seletivas, de revisionismos brandos e de jovens que já nem sabem o que foi a PIDE, o filme lembra-nos que a liberdade custou caro. Que houve quem amasse, sofresse e morresse para que hoje possamos entrar numa sala de cinema sem pedir licença à censura.
É raro: um filme português que combina rigor literário, densidade política e poder emocional, sem se perder em excessos autorais ou timidezes televisivas. «Lavagante» merece público, merece debate, merece existir como ponte entre gerações. Não é só um grande filme português — é uma lição de memória embalada numa história de amor e engano que, paradoxalmente, nos devolve a esperança.
Se o público não o for ver, a culpa já não será do cinema. Essa responsabilidade será nossa, por preferirmos esquecer que também fomos um país de lavagantes, engordando no medo até a hora do corte.
Título Original: LAVAGANTE Realização: Mário Barroso Elenco: Francisco Froes, Nuno Lopes, Júlia Palha, Leonor Alecrim Origem: Portugal Duração: 92 minutos Ano: 2025

