A par de Jafar Panahi, e possivelmente somando à “comunidade” o recente Ali Ahmadzadeh («Critical Zone», vencedor de Locarno em 2023), Mohammad Rasoulof integra a ordem de cineastas iranianos que sorvem goles amargos da atualidade e os devolvem sob a forma de um cinema de urgência e de ativismo imediato. «A Semente do Figo Sagrado», a sua mais recente obra (Prémio Especial do Júri no Festival de Cannes), apoia-se na onda de indignação e protestos efervescentes que se seguiram à morte de Mahsa Amini [2022] — a jovem detida e assassinada pela Polícia dos Costumes por não cumprir as normas do “hijab” — para se estabelecer como uma parábola política enraizada no seio familiar. Somos introduzidos à família de Iman (Misagh Zare), um juiz do Tribunal Revolucionário de Teerão recentemente promovido, cuja sua arma / revólver desapareceu misteriosamente no ambiente doméstico — um incidente que poderá acarretar-lhe consequências graves e o destituir profissionalmente. Para recuperar este símbolo do Estado, Iman interroga, e recorre a outros meios, para pressionar a sua esposa (Soheila Golestani) e as suas filhas (Mahsa Rostami e Setareh Maleki), estas últimas envolvidas no turbilhão fervente das revoltas que marcaram aqueles dias. Entrelaçado com vídeos disseminados nas redes sociais que documentam as atividades de protesto e a repressão das forças contrarrevolucionárias ao serviço do regime, «A Semente do Figo Sagrado» nunca disfarça o seu manto político, é através dele que Rasoulof constroi a sua arte de diálogo ou, mais apropriadamente, o seu megafone cinematográfico unicamente concebido para a denúncia, enquanto explora essa trama de suspeita e corrupção que corrói o interior do seio familiar, um espaço que o cineasta frequentemente utiliza como refúgio de todas as histórias e simbolismos. Rasoulof, um cineasta da ação, evidencia aqui uma hibridez entre literalidade e subtextualidade. O equilíbrio da sua narrativa reside na clarividência dessas duas vertentes: ora somos confrontados diretamente com o que Rasoulof delata — um constante choque com a realidade e a espuma dos dias iranianos —, ora deciframos as alegorias presentes nas nuances do thriller psicológico que envolve a família de Iman. Este jogo de tensões atinge o seu ápice no último ato, onde imagens cuidadosamente orquestradas insuflam um poderoso imaginário revolucionário. A arma e a poeira, por entre a esticada mão do morto – assim desta forma para não divulgar excessivamente enredos – a imagética persistente como um statement, um grito silenciado, uma observação perante um regime, não apenas sustentado pelo patriarcado, mas pelos fundamentalismos de um véu obscurantista. Depois do quase clandestino «Manuscripts Don’t Burn» (2013, que por cá encerrou uma edição do Doclisboa) e do meticuloso «O Mal Não Existe» (2020), Rasoulof arrisca e arrisca, o seu cinema possui o mesmo caracter de uma pedrada no charco. E dito de forma quase relativa e conclusiva, é cinema político do bom …
Título original: The Seed of the Sacred Fig Realização: Mohammad Rasoulof Elenco: Soheila Golestani, Misagh Zare, Mahsa Rostami, Setareh Maleki Duração: 167 min. França / Alemanha, 2024