Há sete anos, enquanto desfrutava de uma pausa na sua carreira cinematográfica para se dedicar a um projeto literário, o canadiano David Cronenberg ficou viúvo, num golpe da vida que levou a sua companheira, a editora e diretora Carolyn Zeifman. A saudade e o luto que cercam essa perda serviram de base para «The Shrouds – As Mortalhas», thriller nomeado à Palma de Ouro de Cannes exibido na Mostra de São Paulo com o título «O Senhor dos Mortos». Apesar de cozinhar os twists do guião numa temperatura demasiado morna, a montagem de Christopher Donaldson confere tempo de decantação para as angústias existenciais do seu protagonista, interpretado por um inspirado Vincent Cassel. É inescapável a analogia entre a figura enlutada interpretada por ele e o realizador, através de uma direção de fotografia um tanto banal de Douglas Koch, inusitada apenas nos momentos em que tenta dar requinte a uma luz bruxuleada.

Investido num argumento palavroso (que vem sendo uma linha de Cronenberg desde o viçoso «Cosmopolis»), Vincent Cassel interpreta Karsh, um produtor de vídeos e empresário bem-sucedido que vive da melancolia alheia. A sua empresa, a GraveTech, localizada num cemitério que lhe pertence, permite que os seus clientes vejam a deterioração dos cadáveres dos seus entes queridos já finados. Certa noite, vários túmulos são violados, incluindo o da sua esposa (papel de Diane Kruger), o que o leva a despoletar uma investigação. A sua cunhada, interpretada pela própria Diane Kruger, será o seu alicerce, apesar do ex-marido desta, vivido por Guy Pearce, perturbar a sua paz.  Cronenberg construiu a narrativa pautado no fato de as cerimónias religiosas operarem na base do vígilia, num princípio de encobrir o que as pessoas perderam. O realizador preferiu construir uma dramaturgia em que o corpo em putrefação fosse desvelado e exposto a um limite de choque, pois não observa os organismos mortos como carne defunta a decompor-se. Pensa neles como embalagens (finas) das experiências que registamos. Ganhou um prémio especial no Lefest, em Lisboa, o troféu Especial do Júri, batizado com o nome do cineasta João Bénard da Costa, pela elegância da sua reflexão.  

Título original: The Shrouds Realização: David Cronenberg Elenco: Vincent Cassel, Diane Kruger, Guy Pearce, Sandrine Holt Duração: 119 min. França/Canadá, 2024

ARTIGOS RELACIONADOS
Estreia – A Prisioneira de Bordéus – Conversa com Patricia Mazuy (realizadora)

Alma é uma mulher burguesa com uma grande casa na cidade e Mina é uma jovem mãe que mora num Ler +

Crítica – ALL WE IMAGINE AS LIGHT – Estreia TVCine

Travelling lateral ao longo das margens densamente povoadas de uma megacidade, Bombaim, ou como agora gostam de lhe chamar, Mumbai, Ler +

Riddle of Fire

Em «Riddle of Fire», Weston Razooli estreia-se na realização de longas-metragens com uma aventura onde o maravilhoso, o absurdo e Ler +

Breve História de uma Família

E de repente, é da China que vem o grande cinema deste ano de estreias. A primeira surpresa foi «Cão Ler +

Fatih Akin recria memórias alemãs da II Guerra – Cannes 2025

Encarado como um veio de renovação autoral para a indústria audiovisual alemã dos anos 2000, de braços dados ao melodrama, Ler +

Please enable JavaScript in your browser to complete this form.

Vais receber informação sobre
futuros passatempos.