Em «Cinzento e Negro», de Luís Filipe Rocha, David (Miguel Borges) refugia-se numa casinha, pousada no topo de uma montanha, no Pico. Fazem-lhe companhia creio que quatro vacas, uma viola e um livro. É pelo menos este o inventário que ele faz à sua amante, Marina (Monica Calle), a sereia que na ilha vizinha acolhe o viajante sempre que ele dá à costa. Mas este é o primeiro de vários equívocos, o menos grave. Isto é, David não é um verdadeiro viajante, ele tem medo de andar de barco e nunca leu um livro. É por isso bastante irónico que tenha escolhido os Açores para se esconder e a Odisseia como primeira leitura. Teria feito melhor se tivesse optado pela Ilíada pois sobre ele não tardará a cair a cólera do implacável Aquiles, ferido no calcanhar e no coração, vestido [mais uma vez] de mulher.

O pathos literário combina muito bem com este filme, recheado de influências. Além de Homero encontramos Raul Brandão, referência clara desde logo no título, «Cinzento e Negro», mas também Cesare Pavese, Herman Melville, entre muitos outros. Os actores, em especial Joana Bárcia, que oferece uma interpretação magnífica de Maria (o tal Aquiles de saias), incorporam essa poesia como sua. Quando falam é como se fosse sempre a primeira vez. As paisagens, sejam elas o quarto descaracterizado de uma pensão barata ou os montes verdejantes do Pico, deixam-se contaminar pela breve história humana. É aliás notável como esses lugares, e até certos objectos, como o arpão, são muito mais do que testemunhas, são mediadores entre o passado e o futuro. Funcionam como uma espécie de constante que lembra e comenta a nossa ligação ao mundo.

Luís Filipe Rocha trabalha todos estes elementos como um verdadeiro alquimista. O resultado final é um filme fascinante e extremamente difícil de classificar. Formalmente, «Cinzento e Negro» aproxima-se de um thriller – temos um crime, um polícia torturado (Filipe Duarte) e alguém que procura vingar-se –, mas a ancoragem moral da história e o tipo de protagonistas que encontramos remete-nos necessariamente para o western, o género que, dizia J. L. Borges, tomou no séc. XX o lugar da epopeia. O casamento entre essa pretensão épica, que existe, e o retrato da situação insular das personagens dá-se numa mistura enigmática pontuada por momentos sublimes e outros de um humor muito terreno, muito peculiar.

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