Três meses após entregar o Urso de Ouro em Berlim ao norueguês «Dreams (Sex Love)», de Dag Johan Haugerud, o californiano Todd Haynes carrega as lições aprendidas ao longo da sua experiência como presidente do júri do maior festival da Alemanha para a Quinzena de Cineastas de Cannes, na cerimónia que prestará um tributo ao seu legado que se realizará nesta quarta-feira. Aos 64 anos, o realizador de «Poison» e «Safe» vai ganhar a Carrosse d’Or [Prémio de Mérito Honorário] na abertura da Quinzena de Cineastas, que mobiliza a Croisette em paralelo na disputa pela Palma de Ouro. Levará consigo a indisfarçável animosidade por Donald Trump – e suas recentes ações de verve transfóbicas e de ranços homofóbicos – que expôs em solo germânico.
“Haverá um momento em que os eleitores de Trump vão entender o que fizeram”, disse o artista, um ícone da estética queer nos EUA desde a década 1990, responsável por sucessos como «Carol», com Cate Blanchett.
A sua passagem como líder de juradas e jurados na Berlinale foi pontuada por democracia. “A ideia é criar um espaço de escuta”, disse Haynes em terras alemãs.
O discurso que leva para Cannes partilha igualmente essa toada democrática. É a partir dela que ele se dedica hoje ao projeto «Fever», cinebiografia da cantora Peggy Lee (1920-2002), com Michelle Williams no papel central. No início de fevereiro, Haynes chegou à Berlinale carregando uma perda profissional nos ombros. Em agosto de 2024, teve uma longa-metragem adiada (quiçá cancelada), nas vésperas de iniciar as suas filmagens, em decorrência da perda do seu protagonista, Joaquin Phoenix. O astro recusou-se a seguir com o compromisso firmado com o realizador de «Velvet Goldmine» (1998), sem tornar públicas a justificação pelo abandono do projeto. Levou bordoadas de todo o lado pela opção de abandonar a empreitada – um argumento centrado numa paixão entre dois homens – que dependia do seu star quality para sair do papel. Haynes jamais apropriou-se do seu posto no festival alemão para criticar o caso.

“No ofício do cinema, o que temos de fazer é manter a nossa integridade. Quando vemos um realizador como Sean Baker, hoje em forte evidência com «Anora» fazer filmes com o seu telemóvel, o que temos é a prova de que a produção indie se renovou”, disse Haynes, que teve o seu sucesso mais recente, «May December: Segredos de Um Escândalo» (“May December”), lançado no Prime Video, o streaming da Amazon.
Em dezembro, esse drama devastador sobre os desejos e as projeções de identidade figurou numa das listas de maior prestígio do audiovisual: a lista anual de 10 Mais da revista francesa “Cahiers du Cinéma”. A equipa crítica do periódico elegeu «May December: Segredos de Um Escândalo» como o segundo melhor filme de 2024 – o n° 1 foi «Misericórdia», de Alain Giraudie. Encabeçado pelas estrelas Natalie Portman e Julianne Moore, a longa concorreu ao Óscar de Melhor Argumento Original (escrito por Samy Burch e Alex Mechanik).
“Foi Natalie quem me levou o projeto, sem crer que a Julianne, a minha parceira em vários trabalhos no passado, pudesse se interessar em atuar nessa produção, de tons polémicos. A adesão dela ao receber o script foi imediata e calorosa”, disse o cineasta à METROPOLIS, em recente entrevista no Festival de San Sebastián, no norte da Espanha.
Concorrente à Palma de Ouro de Cannes de 2023, «May December» custou US$ 20 milhões. O seu enredo narra o empenho de uma atriz, Elizabeth (papel de Portman), para encenar a conflituosa vida da vendedora Gracie (Julianne) que teve um caso com um adolescente 30 anos mais jovem na loja de rações onde trabalhava. Ela acabou por se casar com o menino que, hoje, adulto (vivido com esplendor por Charles Melton), repensa as escolhas de seu passado. Para narrar esse caso, Haynes contou com trilha sonora de Marcelo Zarvos, do Brasil. O também brasileiro é o seu (habitual) montador, o paulista Affonso Gonçalves, com que trabalhou também na minissérie «Mildred Pierce» (2011), no ar na Prime Video. Foi Affonso quem editou «Ainda Estou Aqui», de Walter Salles.
“Affonso e eu temos em pleno um entendimento mútuo, que dispensa palavras. É um colaborador essencial”.

