Desde 1939, quando uma passadeira vermelha abriu terreno para as estrelas de quilate global na Côte d’Azur, a tarefa de Cannes é referendar autoralidades, a partir de conceitos que a “Cahiers du Cinéma” veio a ditar como normas para o reconhecimento das marcas criativas. Jafar Panahi é uma marca desde os anos 1990. Fez o seu nome com a fusão da etnografia com um neo-neorrealismo que procurava dar voz a formas de vivência acachapadas pela pobreza… e por um estado de ações férreas. «O Balão Branco» [«The White Balloon»], que fez a sua fama, iniciou a trajetória pelas telas de todo o mundo com o impulso cannoise, ao vencer o troféu Caméra d’Or de 1995. Essa láurea, com foco em estreantes, nesse ano foi atribuída ao Iraque, pelo filme «The President’s Cake», sobre o aniversário de Saddam Hussein. É uma longa com ecos de Panahi. Natural! As vozes autorais que se firmam a partir do Palais des Festivals (ou da Quinzaine ou da Semaine de la Critique) transformam-se, de alguma forma em faróis. O artesão do Irão transformou-se num, em especial após a conquista do Leão de Ouro de Veneza com «O Círculo» [«The Circle»], há 25 anos. Depois desse filme, ele passou a ser censurado, banido e até preso. Na prisão, criou uma estética semiológica, capaz de filmar de dentro da sua prisão domiciliar (ao lado da sua iguana) ou do volante de um automóvel. Conquistou um Urso de Ouro pela sua semiótica, com «Táxi» [«Táxi Teerão» no Brasil], de 2015. Este ano, optou por um regresso a uma ficção que se pautasse por géneros. O eletrizante «Un Simple Accident» [foto] parece um thriller. Enerva como um. Remete a Costa-Gavras de «Estado de Sítio» (1972) ou de «A Confissão» (1970). Com essa mudança de rota, ganhou a Palma de Ouro de 2025. Uma vez, Cannes fez jus a seu fado.

“Cinema é o que mais conta para mim, pois coloco a minha vida nos filmes que faço”, disse Panahi a Cannes, com o troféu de maior peso do certame francês.
Ele concorreu à Palma antes com «3 Faces», que lhe rendeu a láurea de Melhor Argumento em 2018, e conquistou o troféu Honorário da Quinzena, a Carrosse d’or, em 2011. Antes, em 2003, recebeu o Prémio do Juri da mostra Un Certain Regard por «Ouro Carmin» [«Crimson Gold»]. O seu último sucesso, «Ursos Não há» [«No Bears»], foi laureado com o Prémio do Júri de Veneza, em 2022.
No arranque de «Un Simple Accident», Panahi segue num carro onde um casal tenta conter uma miúda em euforia total com um boneco de peluche preferido. Uma possível colisão trava o veículo. A pequena tem medo do que se passa, mas o pai a acolhe, com severidade.
Nesse início tenso, ocorre o tal “simples acidente” do título, que deflagra uma cruzada de revanche sem medo de exposições gráficas da violência.
Aparentemente, abateu-se um cão. O pai entra numa construção rural para pedir ajuda e alerta um operário, que parece reconhecer o som característico do seu andar manco, fruto de uma prótese. No dia seguinte, o trabalhador bate na cabeça desse homem com uma pá antes de colocá-lo na parte de trás da sua viatura, que se torna tanto a força motriz quanto a principal locação desse filme filmado num regime próximo à clandestinidade. Ali se desenrola tudo o que move a dramaturgia: o sujeito capturado é um agente do governo que torturou pessoas em nome dos seus líderes. A sua captura é uma educação política na qual os seus captores também são educados, sob a cartilha da empatia. É papel de Cannes na sua missão de analisar a linguagem audiovisual.
Juliette Binoche, atriz que liderou o júri, colocou Panahi num panteão onde estão Jane Campion, Bob Fosse, Michael Haneke, Abbas Kiarostami, Hirokazu Koreeda, Cristian Mungiu, Juli Ducournau, Justine Triet, Francis Ford Coppola, os irmãos Dardenne… Eles, os belgas Jean-Pierre e Luc, levaram Cannes às lágrimas com «Jeunes Mères», que ganhou a láurea do Júri Ecumênico e o prêmio de Melhor Guião.
Binoche fez ainda a alegria do Brasil ao conferir dois troféus ao colossal «O Agente Secreto»: Melhor Realização, dado a Kleber Mendonça Filho, e Melhor Interpretação, dado a Wagner Moura. A dupla fez um suspense sufocante com o código postal de Pernambuco, ambientado em 1977.
Terminado Cannes, o planisfério cinéfilo volta suas atenções para o próximo festival de peso, Locarno, que acontece de 6 a 16 de agosto na Suíça, na presença do cambojano Rithy Pahn como presidente de seu júri e na nomeação de Jackie Chan como seu homenageado.