Belíssima primeira longa-metragem, «Na Terra dos Nossos Irmãos» («Dar Sarzamin-e Baradar»), 2024, foi dirigida por um já experiente realizador de curtas-metragens (entre elas «Lunch Time», vencedora da Palma de Ouro de Cannes em 2017), Raha Amirfazli, e pela jovem cineasta Alireza Ghasemi. Três histórias sobre exilados e refugiados de guerra que o excelente argumento dividiu em episódios exemplares da vida de uma galeria de personagens afegãs que iremos acompanhar no quadro de um conjunto de vicissitudes e constrangimentos motivados por acontecimentos que marcaram, e de algum modo ainda marcam, a vida não só no Afeganistão mas também no país vizinho, o Irão, precisamente, a «Terra dos Nossos Irmãos».
Na primeira estação desta peregrinação estamos em 2001, ano de duplo calvário para uma família afegã onde sobressai a constante presença da incerteza face ao medo gerado pela frágil condição em que se encontram. Na emissão de rádio que uma família escuta ouve-se que os EUA continuavam a bombardear o Afeganistão. Na verdade, as forças americanas invadiram aquele país na sequência do 11 de Setembro de 2001 com o pretexto de retaliarem contra os Talibãs que alegadamente davam guarida a Osama Bin Laden, o anjo caído que anos antes fora um dos principais obreiros, com apoio dos americanos e dos seus serviços secretos, da subida ao poder dos fundamentalistas islâmicos. No entanto, os afegãos que na altura se refugiaram no Irão e que na sua larga maioria não apoiavam o regime Talibã estavam em geral sujeitos a serem deportados, nem sempre por razões substantivas ou mesmo justificáveis.

Nesta ficção, daremos conta da arbitrariedade com que um rapaz afegão será detido, alegadamente por não disponibilizar o seu cartão de identidade. Logo depois vemos que não passa de um entre muitos que sofreram a mesma sorte e que a polícia prendeu para os obrigar a arrumar um arquivo que fora inundado e que precisava de ser retirado para local mais seguro. Trabalho forçado e revestido de um clima geral de abuso, na prática sobre aqueles que não se podiam defender sem agravar a frágil situação em que se encontravam. Muitos podiam estar ilegais, sem autorização de residência. Não era o caso do referido rapaz. Todavia, resignado ou não, Mohamed (Mohammad Hosseini) procura não revelar o que lhe sucedeu e pouco depois acaba por ser novamente apanhado nas malhas da lei, se assim se pode chamar ao corpo policial que interpela jovens estudantes frente a uma escola para os recrutar como operários involuntários, a quem nada pagam a não ser o almoço, pausa durante a qual aproveitam para desabafar sobre a sua condição. Na verdade, a maioria quer ver-se livre daquele serviço. De entre os agentes da dita “autoridade”, pouco convictos da sua missão, destacar-se-á um que desde cedo olhara para Mohamed de forma diferente e incisiva.
A realização não esconde a vertigem da homossexualidade espelhada no rosto do predador, nem disfarça o modo como este se relaciona com o jovem, nem mascara a violência (que não vemos mas adivinhamos) de uma relação não consentida. Diga-se, neste filme, aquilo que se vê e aquilo que se pressente fora de campo, o que está para além das quatro linhas do enquadramento, constitui umas das mais eficazes forças motoras da acção. Quando esta precisa de ser abruptamente interrompida, por exemplo, num acto controlado mas desesperado de rebeldia, a solução para o problema que se agiganta, por mais subtil ou violenta que seja, conclui um processo paradigmático de identificação entre as razões do protagonista e a nossa capacidade de interpretação das mesmas num efeito de cumplicidade latente. Neste episódio, sentimos de facto como nossa a dor final de Mohamed, mas sabemos que ela pode ser igualmente um bálsamo libertador.

Na segunda estação assistimos a um caso funesto, curiosamente num ambiente que cedo será de celebração. Mais uma vez, o nosso juízo vai ser orientado para o que são ou não são as razões da protagonista, Leila (Hamideh Jafari), sobretudo ao corporizar um estranho silêncio que alimenta um clima de suspense muito bem urdido. Ela fora a namorada de Mohamed no episódio anterior e agora, passados dez anos, ganha o pão como empregada de uma família abastada da classe média iraniana. Afinal, o que aconteceu? Leila descobre o marido morto e vai esconder essa fatalidade, quer dos patrões, quer do filho. E porquê? Por se encontrar ilegal, assim como o falecido, qualquer denúncia formal do caso podia significar a deportação. Mas a realização e o argumento não retratam apenas a agitação e o desespero da jovem mulher/mãe/exilada e, prosseguindo no seu modelo de crítica corrosiva em que ninguém fica bem na fotografia, fazem com que o casal que a emprega entre igualmente em pânico. Porque a responsabilidade de ambas as partes entra em rota de colisão com os pressupostos legais subjacentes nas relações sociais e laborais iranianas. Por fim, Leila urde uma solução que não podia ser mais engenhosa, embora com similar grau de macabro.
Terceira estação, a acção situa-se agora nos dias da patética retirada dos EUA e seus aliados do Afeganistão. Traídos e deixados sozinhos por aqueles a quem apoiaram durante a ocupação, nos ecrãs de TV vemos a anarquia reinante e as imagens de afegãos em fuga a correr desesperados para entrar num avião. Nesse mesmo momento, os Talibãs, que com alguma arrogância as forças ocidentais diziam estar derrotados, avançavam sobre Cabul e outras cidades com a velocidade de cruzeiro de um airoso e rápido passeio de fim-de-semana. E ainda lá estão no poder…! Mas no final de Agosto de 2021, para o que nos interessa em «Na Terra dos Nossos Irmãos», o derradeiro episódio que coincide com a derrota americana será porventura o mais dramático, mas por razões um pouco diferentes. Na verdade, coexistem aqui memórias amargas e, a certa altura, aquilo que parece uma lufada de ar redentor que atravessa sobretudo os derradeiros planos onde se conclui a breve saga familiar com a história do irmão de Leila e da sua mulher. De início vemos um homem vinte anos mais velho do que nas sequências iniciais (os vinte anos que durou a ocupação americana da sua pátria), o circunspecto Qasem (Bashir Nikzad). No seu rosto e na sua atitude perante os interlocutores iranianos observa-se o mesmo medo, melhor dizendo, igual apreensão e ansiedade de outras eras. De repente será confrontado com uma revelação que o surpreende, a morte do filho que ele supunha estar na Turquia. Mas não, fora afinal para a Síria integrado nas milícias que ali combateram ao lado das forças que defendiam a República Árabe da Síria contra o Estado Islâmico e os mais do que fragmentados opositores do regime de Bashar al-Assad. Mas a esta notícia sombria irá suceder uma outra mais luminosa, a de que a República Islâmica do Irão decidira conceder a cidadania iraniana aos refugiados afegãos que ali se encontrassem há pelo menos quarenta anos. Qasem e a sua companheira preenchiam os requisitos, e será com o eco da recitação do juramento de fidelidade ao país que os acolheu, evocado num ensaio que devia preceder a cerimónia oficial, que o filme encerra. E não podia ser mais forte a mensagem.

Para mim, as cinco estrelas que atribuí a este filme devem-se inteiramente ao modo como os realizadores não hesitaram em demonstrar que a esperança nunca morre e a verdade prevalece sempre como a arma maior para alimentar o corolário de identidade e resistência que importa defender. Em “Na Terra dos Nossos Irmãos”, os cineastas provam que não precisam de simular a inquietação de quem sofre, nem de ser sectários na análise das relações de classe e na afirmação das diversas relações culturais, nem de manipular factos como fazem os reles propagandistas, nem sequer ser dissimulados do ponto de vista ideológico ou religioso, para serem contundentes e darem a estocada fatal na mentira que contamina a visão do mundo que nos rodeia.
No Festival de Sundance de 2004 recebeu o Prémio para a Melhor Realização na categoria World Dramatic Competition.
Em 2025, no LEFFEST, recebeu uma Menção Honrosa no quadro da Selecção Oficial em Competição, ex-aequo com «Silent Friend», 2025, de Ildikó Enyedi.
Título original: Dar Sarzamin-e Baradar Título internacional: In the Land of Brothers Realização: Raha Amirfazli, Alireza Ghasemi Duração: 95 min. Irão/França/Países Baixos, 2024

