Um cinema que não consola, mas que resiste. Betty Faria, 84 anos, vê o invisível e nós vemos através dela.

«Justa», o novo filme de Teresa Villaverde, é um daqueles filmes que ardem devagar, como uma fogueira depois da noite. Mas nem sequer precisa de lume para nos queimar. É um daqueles objetos raros que não se explicam, apenas se suportam. Feito de silêncios, sombras e respirações, é o cinema português no seu estado mais puro: sem filtros, sem moralismo, sem rede. Só verdade.

Villaverde nunca filma o que se vê. Filma o que sobra. Em «Justa», a realizadora parte da tragédia dos incêndios de 2017, mas, em vez de mostrar as chamas, mostra o que ficou: o vazio, o fumo, o medo que se entranhou na pele de quem sobreviveu. É um filme sobre os que ficaram, sobre o que resta quando já não resta nada.

As personagens não contam o que aconteceu, vivem com isso. Falam pouco, olham muito. O fogo aqui é interior, e Villaverde filma-o como uma doença do tempo: uma febre que nunca passa. É o cinema como exorcismo e, como sempre na sua obra, o que mais dói é o que não se diz.

Aos 84 anos, Betty Faria entrega-nos uma das interpretações mais corajosas e despidas (literalmente) do cinema recente. Interpreta uma mulher cega que sobreviveu ao inferno e à culpa: o marido morreu derretido no carro, e ela ficou. Ficou para ver o que o país não quis ver.

A sua cegueira é quase bíblica, uma metáfora do país que tapa os olhos à própria tragédia. Mas Betty não interpreta, quase habita a sua personagem. Move-se pelo ecrã como um espírito cansado e sábio, que já viu tudo e ainda assim insiste em continuar. O seu corpo é o testemunho e a resistência. Há décadas que não se via um olhar tão poderoso vindo de alguém que já não vê.

Nada acontece em «Justa» e, no entanto, tudo acontece. O filme recusa o conforto da narrativa, o arco dramático, o “antes e depois”. Prefere a suspensão. A lentidão. O não dito é uma parte essencial da narrativa. É um cinema que exige paciência e presença, mas que recompensa com algo raro: emoção sem truques.

Teresa Villaverde filma o trauma como matéria viva. A dor não é espetáculo, é respiração. E o espectador, se estiver atento, sente-se dentro dessa dor, não como voyeur, mas como cúmplice. É um cinema táctil, feito de pele e de vento.

Há ecos de «Os Mutantes» e de «Colo», mas “Justa” é ainda mais radical. Villaverde já não quer filmar o drama, mas sim o que vem depois, quando o drama se transforma em silêncio. O que aqui se ouve é o som do país a tentar respirar outra vez.

Entre o elenco, há duas presenças que ficam. Filomena Cautela, longe do seu registo televisivo, surpreende pela contenção: interpreta uma psicóloga que tenta compreender o incompreensível, e o faz sem discursos, só com olhares.

E depois há José Ricardo Vidal, um sobrevivente real de um acidente, com o corpo queimado e o rosto transformado. No filme, Villaverde filma-o sem piedade nem truques, apenas com respeito. A câmara não o esconde nem o exibe: escuta-o. É talvez o gesto mais comovente de todo o filme: devolver humanidade a quem o fogo tentou apagar.

Há ainda Madalena Cunha, a miúda Justa, uma revelação, e uma adolescente que carrega nos olhos toda a tristeza de quem nasceu num país onde até o verde já ardeu.

Villaverde continua a ser uma das cineastas mais livres e teimosas do cinema português. Filma contra o tempo, contra o ruído, contra o mercado. Cada filme seu é um ato de fé na sensibilidade do espectador.

Em «Justa», essa fé é tudo o que resta. É o cinema como gesto de resistência, como se, num país que apaga as suas tragédias com burocracia e eucaliptos, ela ainda acreditasse que a arte pode ver o que os relatórios não veem.

Villaverde filma as margens, mas o que mostra é o centro: o lugar onde o humano ainda existe, mesmo que ferido. O seu cinema é radical, mas nunca cínico. É duro, mas profundamente terno. «Justa» é um filme sobre ver sem olhos, sentir sem palavras e continuar a viver depois de morrer um bocadinho.

Um filme sobre a culpa, a perda e a beleza que resiste entre as cinzas. É, no fundo, um espelho do próprio cinema de Teresa Villaverde: uma chama que se recusa a apagar. Há quem diga que o seu cinema é difícil. Eu diria apenas que é verdadeiro e isso, hoje, é quase um escândalo.

Título Original: Justa Realização: Teresa Villaverde Com: Betty Faria, Madalena Cunha, Filomena Cautela, Ricardo Vidal, Alexandre Batista, Robinson Stévenin Origem: Portugal/França Duração: 110 minutos Ano: 2025

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