Em «Akiplesa» («Tóxico»), 2024, de Saule Bliuvaite, a acção concentra-se nos subúrbios de Kaunas, a segunda maior cidade da Lituânia, antiga capital do país, conhecida pela sua importância no domínio da indústria pesada. Para quem a conhece, há motivos de sobra para a visitar, sobretudo no que diz respeito ao património histórico. Mas, infelizmente, no reverso dessa medalha encontra-se uma área degradada que a realizadora e argumentista elegeu para desenvolver as matérias que desejava salientar numa perspectiva feminina e polvilhada de preocupações vagamente sociológicas. Matérias cujos contornos não deixam margem para dúvidas sobre o carácter sombrio dos espaços habitados por homens, mulheres e adolescentes que, num quase permanente estado de depressão, procuram escapatórias para saírem dali para outras paragens. Para os devidos efeitos, usam os mais diversos expedientes, ainda assim escassos para evitar uma vida cinzenta, plena de dificuldades financeiras e, aparentemente, sem grandes alternativas. No elenco, o destaque incide num grupo de jovens, algumas mesmo muito jovens, que se inscrevem numa escola (gerida por quem não irá oferecer garantias de seriedade, rigor e qualidade didáctica) destinada a ensinar as rapariguinhas com a idade e silhueta dita ideal a seguir uma carreira de modelo. De início, somos levados a pensar que naquelas quatro paredes se podia encontrar a melhor estratégia para aprender a arte de mover o corpo com graça e desenvoltura nas passerelles desse milionário negócio que no plano internacional se identifica como o mundo da moda. Mais para a frente, pelas declarações de uma modelo ali formada e regressada ao convívio das suas companheiras e debutantes lituanas (após um périplo seguramente “dourado” por lugares como Paris, Tóquio ou Nova Iorque), ficamos com a forte sensação de que as proto-modelos se arriscavam a cair nas malhas de práticas e rotinas pouco recomendáveis que, dinheiro a quanto obrigas, as levavam a participar em festas ou qualquer coisa parecida, privadas na maior parte dos casos do poder de dizer sim ou, sobretudo, do direito de dizer não. Talvez por venenosa ironia, numa presença cáustica e visualmente relevante, essa modelo que regressara ao país chegou com o indesmentível perfil da mulher grávida. Para bom entendedor, até meia sequência de planos bastava…!

Num projecto que abarca diversas personagens encerradas entre um presente agreste e um futuro incerto, para dar mais força aos conflitos dramáticos gerados por quem anda perdida no pesadíssimo quotidiano, o argumento concentra as linhas de força no percurso de duas adolescentes. Primeiro em Marija (Vesta Matulyte), que por não ser nativa daquelas bandas será objecto de um bullying deveras canalha por parte das suas colegas. Para além do mais, parece um contrassenso querer ser modelo, já que desde criança coxeia, facto que amplifica o sarcasmo das por vezes bem cruéis colegas e candidatas a um lugar ao sol. Pouco depois conheceremos aquela que virá a ser a sua principal cúmplice e confidente, Kristina (Ieva Rupeikaite). Na verdade, foi esta que provocou um princípio de sobressalto histérico ao roubar num balneário os jeans de Marija, coisa que naquele contexto era mais do que uma afronta, era ficar privado de um bem-amado símbolo da cultura americana e ocidental.

Em boa verdade, considerando o contexto específico de uma Lituânia deprimida e carenciada, o que a produção nos propõe como crítica e reflexão sobre as mil e uma formas de alienação subjacentes a vidas marginais ou marginalizadas por circunstâncias idiossincráticas e socioeconómicas (com incidências óbvias na absorção de ilusórios valores culturais estrangeiros e até algumas práticas condenáveis copiadas das redes sociais) constitui a mais-valia que garante os chamados mínimos no capítulo do reconhecimento das qualidades de “Tóxico”. Na minha opinião, e apesar do que acabei de dizer, obra premiada de forma surpreendente e algo exagerada com o Leopardo de Ouro no Festival de Locarno de 2024. Como espelho de uma parcela da sociedade que vive nos limites do que se pode apelidar de pobreza, não apenas material mas de espírito, não está mal, se nos ficarmos pela definição dos ambientes, as contradições existenciais e os percalços familiares em que ambas as raparigas se movimentam. Deprimente, mas funciona. Diversas sequências, como as das surtidas das raparigas com rapazes um pouco mais velhos, onde drogas se consomem em profusão e o sexo ronda as cabeças espoletado pela vertigem do álcool (que se emborca em quantidades generosas), resumem a falta de horizontes e a incapacidade daquele grupo etário ultrapassar ou evitar as armadilhas do quotidiano. Resta, aliás, saber se alguns já não conseguem comportar-se de outra maneira. Seja como for, nada de novo, e finalmente essas escapadelas não cumprem outra função que não seja reforçar a mais elementar contextualização, sentindo-se aqui e além o resvalar para o lugar-comum. Todavia, quando vemos Kristina a furar a língua numa casa de banho imunda, quando a vemos engolir uma cápsula com uma vigarice qualquer que devia libertar um verme que supostamente a faria emagrecer, e ainda quando deita fora a comida que rejeita (não só porque não é compatível com a dieta atribuída aos modelos, mas se calhar porque foi confeccionada pela balofa namorada do pai), ficamos com a sensação de que com outra energia e dinâmica podíamos estar perante o retrato seguro e desencantado de uma juventude lituana sem rumo e sem causas viáveis. Só que Saule Bliuvaite, nesta sua primeira longa, não consegue articular o que havia de bom no projecto e perde-se em rodriguinhos contemplativos consubstanciados num acumular de imagens e sons que mostram em demasia a sua incapacidade de gerar empatia, para além da básica, por quem ela escolheu para protagonistas. Nem quando estas começam a sair da bolha em que viviam e ensaiam opções arriscadas e algo sinuosas, como o momento em que Kristina se “sacrifica” pela amiga numa sessão de “massagem” para angariar o dinheiro que Marija precisava. Na maior parte dos casos, a realizadora filma-as como se fossem bonecas sem alma, e as actrizes demonstram aqui e além que não são inábeis no domínio da representação, antes pelo contrário. Mas de nada vale ser capaz de representar o desespero e o impasse existencial se do lado da realização, e sobretudo da planificação e montagem, não existir uma força que impulsione e insufle emoção no quadro mais vasto daquilo que o argumento prometia. Enfim, ficam as boas intenções.
Título original: Akiplesa Título internacional: Toxic Realização: Saule Bliuvaite Elenco: Vesta Matulyte, Ieva Rupeikaite, Egle Gabrenaite Duração: 99 min. Lituânia, 2024
fotos: ©Akis Bado

