Logo a abrir esta viagem muito pessoal pelas memórias, sobretudo familiares, da vida e carreira de uma das mais famosas personalidades da música folk, comprometida com as lutas sociais e com as grandes causas que mobilizaram milhões sobretudo nas décadas de sessenta e setenta do século XX, podemos ler uma legenda que resume bem o propósito do documentário «Joan Baez: I Am a Noise», 2023, a saber: “Todos Temos Três Vidas: a pública, a privada e a secreta”.

Produzido por Patti Smith e realizado por Karen O’Connor, Miri Navasky e Maeve O’Boyle, esta obra aborda a vida interior da compositora, cantora e intérprete em correlação com o pai, a mãe e as duas irmãs, numa incisiva interpretação do que foram os altos e baixos dessa família. Por isso não deixa de ser importante sublinhar que a exclamação “I Am a Noise” precisava de ser enquadrada nesse contexto. Em Portugal, esta obra recebeu como apêndice uma expressão retirada ao imaginário do nosso PREC (Processo Revolucionário em Curso), «Joan Baez – A Cantiga É Uma Arma». Mas não chega para nos dar a significação mais justa ou adequada de “I Am a Noise”. Não refere a versão original seguramente os dotes vocais de Joan Baez, porque esses mantiveram a graça e o vigor apesar do peso dos anos que passam e que inevitavelmente alteraram a sonoridade cristalina de outrora. Trata-se antes de assumir aqui e idiomaticamente que ela nunca foi menina para seguir o padrão normal da classe média americana, nem da latina e anglo-saxónica, apesar de lhe correr nas veias sangue mexicano por parte do pai (Albert Baez) e do avô (Alberto Baez, que deixou o seu país para ir viver em Brooklyn, Nova Iorque) e sangue escocês por parte da mãe, Joan Chandos Baez. De facto, quer na vida pública quer na privada, ela manteve o estatuto de rebelde, mulher que incomoda, que aparece aqui e além como a espinha cravada na garganta do conformismo. Peça que emperra a engrenagem, mas nem sempre a seu favor. No entanto, no capítulo da vida secreta as coisas fiavam mais fino, e muitas e repetidas vezes a depressão surgia quando sentia maior felicidade ou, como por diversas vezes irá confessar, quando a mera perspectiva de ser feliz a atormentava. Não o assume por completo, mas a sua formação religiosa no seio de uma família Quaker produziu algum efeito. Não obstante, parece igualmente claro que a relação com os pais, particularmente com o pai que insistia em conhecer o mundo e partilhar essa descoberta com os seus mais próximos, abriu novos horizontes a uma então adolescente que a partir de certa altura só esperava pelo momento certo (no início acompanhada pela irmã Margarita Mimi Baez Fariña (1945–2001) para dar o salto em frente rumo a uma carreira musical que nunca mais abandonou. E quando o documentário parecia caminhar para uma exposição da consagração pessoal e colectiva de Joan Baez, as realizadoras e provavelmente a própria retratada decidem entrar no caminho sinuoso das revelações da intimidade, não física mas psicológica. Isso acaba por influenciar a visão dos materiais sonoros e visuais que vamos acumulando na memória, mesmo quando eles se debruçam sobre relações semi-públicas e semi-privadas como um romance com outra mulher, os amores e desamores no relacionamento com Bob Dylan ou as vicissitudes políticas e emocionais inerentes ao seu casamento com o activista e pacifista David Harris, de quem ficou grávida pouco antes de o marido ser preso por contestar a participação dos Estados Unidos na Guerra do Vietname. No plano individual, veremos como Joan Baez integrou o seu activismo na luta pelos direitos cívicos dos negros americanos. A certa altura será a própria a confirmar a sua filiação ideológica nesse combate após ouvir o discurso do advogado e pastor Martin Luther King na imensa jornada que reuniu mais de 250 mil pessoas e que ficou conhecida por “Marcha Sobre Washington”, cujo ponto alto foi atingido no dia 28 de Agosto de 1963. Falamos do glorioso discurso “I Have a Dream”.


O ritmo da montagem será pautado, independentemente do fulgor das manifestações exteriores, pelos depoimentos expressamente rodados para o filme e por gravações oriundas de diferentes arquivos, que de algum modo dissipam as sombras que pairavam ambíguas na relação com a irmã mais nova, a já referida Mimi Farinã, e ainda com a mais velha, Pauline Baez (1938-2016), que a dada altura da sua vida optou pelo recolhimento, longe da ribalta que as irmãs almejavam e onde ambas nutriam alguma rivalidade.

Muita e diversa documentação foi reunida a partir dos arquivos que aparentemente se encontravam guardados e preservados, mas com ar de estarem intocados até ao momento em que foram “abertos” para o presente documentário. Será aliás essa “libertação” dos materiais “não oficiais” (muitos desenhos da autora, gravações da sua voz e das vozes dos familiares) que consubstancia o melhor deste documentário. Temos assim uma dupla libertação: o desbloquear da memória privada, concebida como exercício de expiação e redenção, e a inclusão sistematizada da iconografia que dá forma ao corpo que por fim encerra a alma de uma artista e de uma mulher antes do seu “Fare Thee Well Tour”, série de concertos programados pouco antes de a pandemia do Covid 19 fechar o mundo para obras. Despedida que inteligentemente Joan Baez quis realizar para melhor preservar os valores perenes que sempre defendeu e que partilhou como, por exemplo, na emblemática canção “We Shall Overcome”. Sem dúvida, um acto de dignidade e coragem.

Um documentário que pode ser visto em sala numa iniciativa da produtora e distribuidora ZERO EM COMPORTAMENTO.

Título original: Joan Baez: I Am a Noise Realização: Miri Navasky, Maeve O’Boyle, Karen O’Connor Documentário 113 min. EUA, 2023

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