Há qualquer coisa de refrescante no atual cinema iraniano – e não necessariamente aquele que identificamos pela linhagem dos mestres Abbas Kiarostami e Jafar Panahi. Algo que tem a ver com uma gestão sábia dos temas sociais e da linguagem usada para os abordar. Vejamos, que outro meio existe mais credível do que este cinema para nos dar os contornos da realidade no Irão? E porém, os filmes não são apenas o “encargo” do seu assunto político, como se vê pelo doce e levemente subversivo «O Meu Bolo Favorito», da dupla Maryam Moghaddam e Behtash Sanaeeha, que em 2020 assinou «O Perdão», um filme que falava da pena de morte através da luta de uma mulher por justiça, depois da execução do marido que se provou inocente.
À partida, «O Meu Bolo Favorito» não aparenta o mesmo potencial de melodrama que se adivinhava, desde o primeiro plano, no filme anterior. Mas não nos fiquemos pelos sinais de suposta leveza: a graça toldada que reveste aqui o quotidiano de uma mulher de 70 anos esconde uma melancolia profundíssima. Eis, pois, uma comédia dramática capaz de nos dar o Irão pela lente amorosa: Mahin (Lili Farhadpour) é essa senhora solitária, viúva há 30 anos, que passa os dias à procura de migalhas de companhia, sejam os telefonemas da filha que emigrou, sejam amigas hipocondríacas ou uma fila para o pão. Numa das suas saídas isoladas, mais especificamente, num restaurante, ouve a conversa dos taxistas que se referem a um deles como “homem só” – Mahin presta bem atenção ao dialeto corporal dele e decide persegui-lo como quem não pode deixar escapar a lotaria…
Assim começa uma noite deliciosamente ternurenta, por entre copos de vinho, manjares e danças na sala de estar. Um encontro mágico que vale por si só, pela riqueza do retrato humano feito através de uma interação gentil, contextualizada num país onde não se pode ter uma conversa singela sem referir, volta e meia qualquer preocupação com a polícia da moralidade (há mesmo uma cena, num parque público, que mostra como as mulheres com o hijab indevidamente colocado se sujeitam a ser levadas para a esquadra).
Através de uma situação meiga e alegre, Maryam Moghaddam e Behtash Sanaeeha criaram uma luz diferente para se olhar a noite escura do Irão – «O Meu Bolo Favorito» é uma pequena maravilha; mas isso não impede que os seus realizadores estejam proibidos de viajar e aguardem julgamento em tribunal por “propaganda contra o regime iraniano, desrespeito da lei islâmica e disseminação de práticas libertárias e de prostituição”. Tão-só inacreditável.
TÍTULO ORIGINAL: Keyke mahboobe man REALIZAÇÃO: Maryam Moghaddam, Behtash Sanaeeha ELENCO: Lili Farhadpour, Esmaeel Mehrabi DURAÇÃO: 97 min. ORIGEM: Irão, França, Suécia, Alemanha ANO: 2024
Fotos: Hamid Janipour