Havia algo em «Titane» para lá das reacções altamente negativas perante a sua conquista à Palma de Ouro (num ano de Cannes em recomeço pós-Covid), que nos tempos seguintes desejámos cumprir. Uma dessas coisas era escapar à sobreliteralidade (hoje, como prego, um sintoma nefasto de muitas produções): assentar no subtexto e na metaforização dos corpos, neste caso numa construção de idealização corporal, seja física ou identitária, com Vincent Lindon a desfazer a sua robustez paquidérmica, ou a revelação Agathe Rousselle num papel nas franjas do binarismo sexual. Obviamente, «Titane» não era uma obra isenta de referências, bastava observar atentamente para encontrar as suas vénias ao body horror institucionalizado por David Cronenberg (mais cronenbergiano do que o próprio filho, Brandon, sem dúvida) ou à influência diagonalizada do fetichismo metálico de Shinya Tsukamoto, surgindo emaranhado num perfeccionismo, ou talvez mesquinhez, que atribuiu a Julia Ducournau uma ambição pouco comum no género (salvo raras excepções que aqui não adiantaremos). Pois bem, depois da promessa de duas longas-metragens, eis a vista grossa: «Alpha», do qual se espera não profetizar a máxima de “à terceira obra revela-se o(a) realizador(a) que se seguirá”. Em termos teóricos, o filme é uma continuação conceptual do que fora explorado nos trabalhos anteriores; mas à primeira instância sentimos uma certa desaprovação da sua estética. Ducournau apresenta um filme de ambientes fechados, câmara ansiosa e fotografia azulada-metalizada, apenas contrastada com o final quase apoteótico, onde tons avermelhados e poeirentos materializam uma alusão repetida vezes sem conta ao longo da narrativa. Estabelece-se a relação entre corpos — decompondo-os ou “diamantizando-os” — em serventia de uma metáfora evidente, ora anacrónica, ora interiorizada numa espécie de histeria colectiva: sim, o HIV como demarcação temporal e social. Nada contra as ditas metaforizações no “cinema de género”, até porque é delas que ele se alimenta principalmente, contudo, em «Alpha», apesar do evidente (e do desleixo em relação às obras anteriores), é de destino empoleirado e fácil de lá chegar e interpretar tudo como uma mera ‘farsa’ … e como é mau sinal encararmos uma viagem toda numa farsa! Ducournau só se reconhece apenas em dois pontos: o body horror (mesmo que perfumado) e o gosto musical que emerge em momentos de libertação. Até ao epílogo, a catarse é labiríntica, dando imagética à moral, ao luto e, simultaneamente, à memória, a burla de quem tende a investir sentimento neste grupo de personagens.

Título original: Alpha Realização: Julia Ducournau Elenco: Mélissa Boros, Golshifteh Farahani, Tahar Rahim  Duração: 128 min. País: França, Bélgica, 2025

Foto: ©MANDARIN-COMPAGNIE-KALLOUCHE-CINEMA-FRAKAS-PRODUCTIONS-FRANCE-3-CINEMA

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