O realizador sul coreano Bong Joon Ho («Parasitas», «The Host – A Criatura»), continua a fascinar os espectadores ao criar novos mundos no grande ecrã.
O último filme de Bong Joon Ho é a proposta mais ambiciosa da sua eclética carreira, «Mickey 17» é a junção de uma mão cheia de grandes ideias que divergem entre o particular e o geral numa fábula sci-fi. O filme é um belo exercício sobre os dilemas do ser humano e da própria humanidade. O filme desenrola-se num planeta distante, mas tem uma mensagem bem próxima do nosso mundo vergado ao capitalismo mais sufocante e foca igualmente as aspirações das pessoas invisíveis no seio das pirâmides sociais.
O cicerone de serviço é Mickey Barnes (Robert Pattinson), o herói acidental e narrador desta história é um pobre diabo, um desgraçado que fugiu da Terra para uma nave de colonização de um planeta distante. As dívidas num negócio que correu mal deixaram Mickey e ao seu amigo (Steven Yeun) com perigosos agiotas à perna – daqueles que cortam mesmo as pernas. Sair literalmente da Terra era a única solução.
Uma pessoa algo ingénua, mas com um bom coração, Mickey decide dar-se como voluntário para ser o “descartável” da nave – não tinha habilitações para mais. Ele estava tão ansioso para dar a grande fuga que não leu o contrato sobre as suas funções. Ele torna-se um trabalhador comum nas catacumbas da nave, mas com uma particularidade… Sempre que morre, Mickey é ressuscitado numa impressora, a consciência e as memórias são replicadas noutra cópia do seu corpo e assim pode prosseguir o seu trabalho (eterno). As tarefas mais espinhosas da missão são sempre desempenhadas pelo descartável Mickey, ele é carne para canhão, como testar os efeitos de um vírus mortal ou reparar o exterior da nave durante uma radiação solar. Mickey consegue sair da Terra com direito a viver eternamente em troca do seu trabalho perpétuo. O único lado bom deste diabólico loop foi o facto de conhecer Nasha (belo desempenho de Naomi Ackie), a viagem de ambos torna-se mais aprazível quando passam a vida a fazer sexo como coelhos…

Mas a história torna-se ainda mais interessante quando Mickey 17 é dado como morto durante uma missão – nada especial – mas no entanto ele acaba por ser salvo por uma criatura alienígena. Os colonizadores humanos chamam-os de Creepers e as altas hierarquias consideram-nos um alvo a abater. No entanto, esses bichinhos, que se parecem com croissants com patinhas, não são exatamente o que aparentam ser… O filme diverte-se imenso ao desconstruir as verdades absolutas. E sem se aperceberem da sobrevivência de Mickey 17, a nave imprime outro Mickey, o Mickey 18… Num mundo cheio de regras, é proibido existir a duplicação do mesmo descartável criando uma situação algo burlesca. Há um delicioso flashback que explica a situação da duplicação de descartáveis, aliás, há mais recuos temporais no filme para contar pequenas histórias, são apenas um dos exemplos da amplitude e os deleites da narrativa. O filme foi baseado no livro “Mickey7” de Edward Ashton, lançado em 2022 e adaptado pelo realizador e argumentista Bong Joon Ho.
Robert Pattinson fez um brilharete neste duplo desempenho ao interpretar um Mickey 17 afável e amoroso e um Mickey 18 que é um sociopata. Este último encheu o saco, farto de ser espezinhado está feito revolucionário contra o palerma que controla a missão, Kenneth Marshall (Mark Ruffalo) um político manhoso e incompetente. Ele e a sua esposa Ylfa (Toni Collette) – que é ainda mais apanhada do clima do que o marido – estão-se nas tintas para tudo e todos, mesmo assim são idolatrados como divindades. Estes narcisistas de primeira água têm um controlo absoluto nos destinos da missão de colonização. Os dois actores, Ruffalo e Collette, açambarcam grande parte do humor do filme com muita estupidez e laivos de ídolos políticos do nosso mundo… A própria narrativa desmultiplica-se constantemente em subtramas e gags de belo efeito sobre o ciúme, o ódio patético, o amor e a violência (sempre com cariz de cartoon).

O filme é visualmente audaz possuindo uma grandiosidade por mérito da visão de Bong Joon Ho e da fotografia de Darius Khondji. Ele foi meticuloso a incutir o carácter austero da narrativa na sua direção de fotografia num cenário digno de uma unidade metalúrgica (na nave) versus o planeta gélido onde as criaturas emanam mais humanidade do que os próprios humanos mas há sempre boas excepções à regra…
«Mickey 17» é um filme pejado de tramas pessoais, sociais e políticas. É o primeiro filme de Bong Joon Ho com um estúdio de Hollywood. A Warner Bros. é famosa por apoiar os criadores mais visionários, entre outros, Kubrick passando por Scorsese até chegarmos a Nolan. O autor sul coreano teve liberdade criativa para desenvolver esta magnífica e desconcertante alegoria sob a condição humana. A maioria da raça humana vive com aquela sensação que é descartável ao serviço dos ímpetos de pessoas intoxicadas pelo poder e a ganância, o filme agarrou nesse conceito e criou uma sátira sci-fi para a prosperidade em mais um belo capítulo da carreira do director Bong.
Título original: Realização: Bong Joon Ho Elenco: Robert Pattinson, Naomi Ackie, Mark Ruffalo, Toni Collette, Anamaria Vartolomei, Holliday Grainger Duração: 137 min. Coreia do Sul/EUA, 2025
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