Domingo é dia de Martin Scorsese em broadcast (ou seja, TV aberta) em solo brasileiro. Às 21h30 deste 21 de dezembro, a par do documentário de Rebecca Miller [«Scorsese»] sobre ele rimbombando no streaming, a emissora pública TV Brasil exibe «Silêncio» («Silence», 2016), uma obra-prima que ficou proscrita, apesar de todo o prestígio do diretor. A transmissão será às 21h30 do horário de Brasília, 0h30 em Lisboa. À época do seu lançamento, a longa-metragem mais cristã de Marty — que pica o ponto na Filmin.pt com «Mean Streets» — fracassou no empenho de se consagrar como um êxito comercial. Custou US$ 50 milhões e faturou apenas US$ 23,8 milhões. Apesar disso, com o tempo, a produção voltou a ser adulada, com exibições em canais a cabo e em muitas plataformas, com direito a convites para retrospectivas internacionais. É uma redenção para um fiasco. Tratando-se de uma trama com temática religiosa, redenção é, mesmo, “a” palavra.  

Enquanto o projeto novo do realizador — «What Happens At Night», a ser rodado com Jennifer Lawrence e Leonardo DiCaprio — não se materializa, vale prestigiar o seu passado de glórias. No caso de «Silêncio», é um passado feliz, feito na esteira de sucessos como «The Departed» (2006).

Cordeiro de Deus, aquele que tira os pecados do mundo, é, há décadas, o motor imóvel da obra de Scorsese. Ele desenhou sua obsessão pelo sacrifício como um gesto restaurador das relações entre os homens – mesmo em relações com base em mecanismos sociológicos, tipo o crime. É do sangue derramado de Travis Bickle que a Nova York de «Taxi Driver» (1976) pode sair do umbral da marginalidade mais rasteira. É da imolação da amizade de Henry Hill (Ray Liotta) pelos parceiros de máfia que o educaram que a célula mafiosa de «Os Bons Companheiros» [«Tudo Bons Rapazes/Goodfellas»] (1990) se vê forçada a redesenhar-se. É a doação de um menino a um universo de prestidigitação que permite a Georges Méliès uma chance de sair das sombras e assumir o seu lugar de génio do cinema em «A Invenção de Hugo Cabret» (2011). Portanto, não se poderia esperar outra coisa senão um herói sacrificado em «Silêncio», que representa uma epifania em forma de filme, resultado da imersão de Scorsese no romance homônimo do escritor japonês Graham Greene: Shûzaku Endô. Tem algo nele de «O Deus e o Diabo na Terra do Sol» (1964), a Bíblia da fé glauberiana, da qual o realizador de «Os Infiltrados» (Oscar de melhor filme e direção em 2007) é fã. Há algo do sertão de Glauber Rocha no Japão, para onde um jesuíta (Andrew Garfield, impecável) vai buscar seu mestre perdido entre uma horda de guerreiros que condena católicos a um mar de torturas (literalmente).

Pela lógica, um cordeiro será oferecido, no temor ou no tremor, ao Absoluto. Assim, a natureza (aquela com “n” minúsculo, a dos homens, da cultura) se harmoniza no que pode ser chamado de um tratado de antropologia de 2h40, que apresenta a mais esplendorosa fotografia que o mexicano Rodrigo Prieto já fez ao recriar o século XVII. Não é por acaso, ele foi nomeado ao Oscar por seu olhar. Fruto de um trabalho de imersão de 25 anos, dedicado pelo cineasta à busca de viabilizar o projeto de filmar Endô, essa produção carrega um elemento perpétuo (ou seja, autoral) na obra de Scorsese. O interesse do diretor pela permanência de certos valores, especialmente a lealdade, permeia sua obra tanto em ficções como «Casino» (1994) quanto em documentários como «Shine a Light» (2008), sobre a liga dos Rolling Stones. Se existe algo que o vento não enverga, que o dinheiro não compra, que o sexo não ultrapassa, é a condição de ser leal, seja a um amigo («A Cor do Dinheiro»), a uma causa («Gangs de Nova York»), a um amor («A Idade da Inocência») ou, neste caso, a Deus. Ser leal envolve sacrifício. E o padre Rodrigues (Andrew Garfield) vai, a duras penas, aprender uma lição que Scorsese já nos dera em «A Última Tentação de Cristo» (1988), ao se debruçar sobre o mito de Judas Iscariotes: nos desígnios de Deus, o traidor algumas vezes é a peça central da fundação da Fé como um bem maior… e coletivo.

No roteiro [argumento] de Jay Cocks, a relativização será a linguagem imperial: cada certeza que Rodrigues carrega (e nós também) desloca-se para um outro ponto de vista, não um em que ele deva abandonar suas convicções, mas sim um em que ele tenha de aprender a exercitar seus credos de novas formas – mais e melhores modos, superiores para o Outro… e para Deus. Percebe-se a certa altura que não se trata de um filme sobre o exercício da fé, e sim de um filme sobre arrogância. A arrogância institucionalizada. Aprende-se isso não dos padres heroicos – a princípio –, mas das bestas e feras que os acossam de katanas na mão. Os guerreiros japoneses, que inicialmente são vistos como animais selvagens, nos ensinarão de uma maneira por vezes de escárnio. Como nos prova o genial senhor da guerra vivido por Issei Ogata, na atuação mais dionisíaca do filme, que o ódio nipônico pela fé cristã não é uma rejeição religiosa nem um ato demoníaco. O repúdio deles é uma forma de prevenção a uma cultura chegada, como eles dizem, “do Oeste”, do Ocidente, e que ameaça jogar por terra tradições nacionais edificadas ao longo de séculos. Ou seja, a questão é, de novo, o perpétuo. O perpétuo da cultura, frente a invasões bárbaras. Só que os bárbaros, neste caso, não são os que impunham espadas e lanças, são os que erguem a hóstia aos Céus.

Que os entes celestes louvem os/as programadores/as da TV Brasil pela escolha feliz, ou melhor, divina.

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