Subitamente, entre surpresas e desilusões, filmes empolgantes e filmes que já não têm cinema dentro deles, os acasos da programação permitem ver, numa só manhã, «Um Simple Accident», do iraniano Jafar Panahi, e «Fuori», do italiano Mario Martone [foto: Valeria Golino]. Digamos, para simplificar, que são dois dos maiores acontecimentos da programação do 78º Festival de Cannes — o primeiro encenando o “simples acidente” que o título refere, descrevendo a sua perturbante transfiguração num pesadelo moral e político; o segundo evocando com invulgar sensibilidade e comoção a escritora italiana Goliarda Sapienza (1924-1996) e, em particular, o tempo de gestação da sua obra-prima, o romance “A Arte da Alegria” (recentemente reeditado em Portugal com chancela das Publicações Dom Quixote). Mesmo sem fazer equivaler os modos narrativos dos dois filmes, não deixa de ser interessante referir que em ambos encontramos as marcas de uma pulsão realista que, como se prova, não abandonou algum do melhor cinema contemporâneo. Na certeza de que o realismo, ou melhor, os realismos nada têm que ver com o naturalismo grosseiro que predomina no espaço televisivo, quase sempre através das imagens a que se cola o rótulo de “em tempo real”. Afinal, a ficção é, ou pode ser, uma via de conhecimento do tempo, inevitavelmente real, de que se fazem as vidas humanas — a Palma de Ouro para Panahi ou Martone seria tudo o que se quiser, mas não escandalosa.

