Jane Campion quebra o seu hiato na realização após «Bright Star» (2009) para um triunfante regresso em 2021 com o acutilante e memorável «O Poder do Cão». A história é envolvente e possui um ritmo e uma ironia de justiça poética. É um retrato da masculinidade, do amor e do mal com os requintes de crueldade e hipocrisia, mas também do triunfo cerebral dos marginalizados perante a presunção daqueles que os dominam impiedosamente.
«O Poder do Cão» é baseado num livro homónimo de Thomas Savage de 1967. A acção decorre em 1925 num rancho no Montana, mas a rodagem foi feita na Nova Zelândia. O cenário e a escolha das cores – os verdes e os castanhos – que predominam na paisagem são arrebatadoras, servindo de pano de fundo para este poderoso drama. A trama complexa está carregada de contradições, sendo igualmente uma colisão na transição entre duas eras em termos sociais e tecnológicos. O enredo centra-se na vivência de dois irmãos que abandonaram a formação universitária para cuidarem do rancho dos seus pais. Passados 20 anos, Phil Burbank (Benedict Cumberbatch) transformou-se num homem cruel e ressabiado que reserva no seu íntimo um amor proibido. Phil inferniza a vida do irmão, George Burbank (Jesse Plemons), que apesar do isolamento do rancho encontra o amor com uma viúva (Kirsten Dunst) que detém uma estalagem num povoado vizinho e que tem um filho (Kodi Smit-McPhee) ostracizado pela sua sexualidade. Plemons e Dunst são casados na vida real e os seus papéis apesar de espinhosos resultam em duas performances muito conseguidas. Benedict Cumberbatch esteve dentro do personagem durante toda a rodagem e estagiou num rancho do Montana para assimilar de melhor forma os trejeitos do seu papel de rancheiro. É uma interpretação que não faz prisioneiros, é uma performance visceral num papel antagónico que é belo e selvagem, carregado de erosão humana, mas que também esconde um lado mais sensível. Foi provavelmente a melhor interpretação masculina de 2021.
«O Poder do Cão» é a anatomia do mal, o desconsolo do amor e a dor que se transforma em raiva contra o mundo e a felicidade do próximo. É também uma história sobre a natureza das contradições e o triunfo daqueles que são tratados abaixo de cão. É um filme de uma beleza exuberante que conjuga a imagem e o esplendor da visão de Jane Campion, as interpretações de Cumberbatch e companhia e uma história intemporal sobre a condição humana. Um dos melhores filmes de 2021.
Título original: The Power of the Dog Realização: Jane Campion Elenco: Benedict Cumberbatch, Kirsten Dunst, Jesse Plemons, Kodi Smit-McPhee Duração: 126 min Reino Unido/Canadá/Austrália/Nova Zelândia/EUA, 2021
[Texto originalmente publicado na revista Metropolis nº83, Abril 2022]