Depois do grande êxito de «Pobres criaturas», Yorgos Lanthimos traz-nos «Histórias de Bondade», uma obra de muito difícil digestão. O director grego volta a juntar-se a Efthimis Filippou para nos trazer um filme mais perto de «Canino» (2009),   centrado num fascínio pela crueldade nas relações humanas. Com as diferentes personagens testemunhamos, com umas lentes que dir-se-iam lacanianas, às tensões entre aquilo que desejamos e o que nos prende pelas peias da conduta social: qual é, na verdade, o nosso papel social e qual a nossa identidade? Essa desfragmentação que há em nós é transposta no filme numa sequência de três estórias em que os actores se repetem em diferentes personagens mas que, de alguma forma, parecem contínuas e contíguas. No entanto, apenas uma críptica menção a uma personagem com as iniciais RMF serve de alinhavo aos três contos que se desenvolvem em reflexões sobre as ideias de poder e de controlo. Em comum, têm o facto de, por um lado, serem descrições de relações baseadas num eixo de dominação/submissão; e, por outro, focarem-se no medo paranoico de se ser abandonado ou substituído por outro. Quer esse outro seja alguém real (como na primeira e terceira sequência) como por um doppelgänger, como acontece na segunda sequência: um conceito que Lanthimos já tinha explorado na sua curta-metragem de 2019, «Nimic».

Toda a acção passa-se, de forma geral, na região de Nova Orleães mas, em particular, em não-lugares tal como definidos pelo antropólogo Marc Augé. Estes não-lugares são espaços que não podem ser definidos como identitários, relacionais ou históricos. Há um vazio nos espaços apresentados que não nos permite relacioná-los com as personagens: de as sedimentar e ligar a uma identidade e história. Esse vazio é igualmente acentuado pela ausência quase total de um público exterior às personagens: nas ruas e nos edifícios não há ninguém. Tudo isto – acrescentado a uma inteligente escolha estilística de cenários com uma preponderância de estilos arquitectónicos algo alienantes como o modernismo midcentury ou o brutalismo – destila num sentimento opressivo de unheimlich, ou seja, um sentimento de estranheza no que deveria ser familiar. Tudo parece normal, corriqueiro, quotidiano, mas não o é. Mesmo o guarda-roupa (criado por Jennifer Johnson) mantém este sentimento numa escolha de peças que acentuam o desafinamento e a ilusão de normalidade. A maquilhagem serviu de tempero forte acentuando todo este desacordo com uma hiper-naturalidade: a pele dos actores surge com marcas de acne, borbulhas, olheiras, cicatrizes e todas a mazelas e defeitos de uma pele natural pouco cuidada. Numa cena, filmada em plano muito apertado, vemos as bocas de Emma Stone e Willem Dafoe enlaçadas num beijo que se transforma num catálogo de poros, fluídos e cruezas provocando uma reacção mais emética do que erótica.

Toda esta estranheza, crueza e hiper-realidade, a um só tempo, teve um grau de exigência enorme dos actores que conseguiram estar a par do que lhes foi exigido mesmo quando se acercavam do gore. Emma Stone, Willem Dafoe e Jesse Plemons desdobraram-se em três personagens cada. Estas personagens viviam na tela por apenas três quartos de hora: tempo que o público tinha para ver os actores transformar-se nessas personagens que logo tinham de ser esquecidas para se aceitar os mesmos actores a representarem outras personagens. Se bem que o trabalho dos actores é muito bem conseguido, o filme pelas suas narrativa, estrutura e duração acaba por ser bastante exigente para o público. Comecei por dizer que este é um filme de digestão difícil e, talvez tivesse ganho mais se apresentado com o formato de mini-série, porquanto mais fácil de consumir em três pequenas doses. Como quem come uma pessoa…

Título original: Kinds of Kindness Realização: Yorgos Lanthimos Elenco: Emma Stone, Jesse Plemons, Willem Dafoe, Margaret Qualley, Hunter Schafer Duração: 166 min. EUA/Irlanda/Grécia/Reino Unido, 2024

[Texto publicado originalmente na Revista Metropolis nº108, Julho 2024]

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