Em «The Lost Bus» («O Autocarro Perdido»), 2025, de Paul Greengrass, logo de início sabemos o local e a região em que a maioria dos dramáticos acontecimentos vai ocorrer. De certo modo, porque já sabemos um pouco daquilo que nos vão dar, esse reconhecimento faz-nos lembrar a intrigante ironia relacionada com o nome da cidade palco de um dos piores desastres naturais dos EUA, ou seja, Paradise, onde vive o protagonista, o motorista Kevin (Matthew McConaughey). Paraíso, sem dúvida, situado no Norte da Califórnia, poucos minutos depois atingido por um gigantesco incêndio florestal que, ao espalhar-se por uma vastíssima área arborizada, será o prenúncio mais ou menos anunciado de múltiplas e escancaradas portas para o Inferno.

De facto, não podia ser mais amarga a noção de que Paradise, zona urbana inserida numa paisagem onde o verde dominante desponta como uma espécie de contraponto ao habitual cinzentismo das grandes metrópoles, iria ser palco de uma catástrofe de tais proporções. Mas antes mesmo de nos conduzir para o modo disaster movie, que vai imperar soberano numa parcela significativa dos seus mais de cento e vinte minutos, a realização preocupou-se em contextualizar quando (estamos a 8 de Novembro de 2018), como (durante um gigantesco incêndio, Kevin conduz um autocarro escolar e será nessa função que se irá distinguir dos restantes motoristas seus colegas) e, sobretudo, quem vai ser realmente a figura dominante e quais são as suas preocupações no plano pessoal e familiar. Inspirada nos perfis humanos inscritos no livro “Paradise: One Town’s Struggle to Survive an American Wildfire”, escrito em 2012 pela jornalista do San Francisco Chronicle Lizzie Johnson, relato de vários casos ocorridos com pessoas comuns durante os maiores incêndios ocorridos na História recente da Califórnia, a personagem interpretada por Matthew McConaughey não difere muito daquilo que se podia apelidar um homem perdido nas encruzilhadas do destino, antes mesmo de o autocarro se perder na fornalha que alastrava destruindo a relativa paz que antes parecia reinar. Divorciado e em crise existencial, descrente de si próprio mas com a esperança de recuperar a confiança, diria mesmo, a amizade e cumplicidade do filho de quinze anos, Kevin habita numa casa modesta com a mãe, o que constitui para ele um problema acrescido devido ao facto de a senhora já idosa apresentar alguma vulnerabilidade no plano da saúde e da mera autonomia para desempenhar rotinas ou outras e mais robustas actividades quotidianas. Diga-se que o filho de Kevin nutre uma agressiva preferência pela mãe, personagem ausente no que diz respeito a figuração, mas presente enquanto voz castradora que faz carregar sobre os ombros de Kevin a culpa e a má-consciência relativa a situações mal resolvidas no passado. Para piorar as coisas, Kevin vê-se obrigado a sacrificar o seu fiel amigo, um cão com uma doença incurável e, vida mais dura e aziaga, só por encomenda ao Diabo.

Todavia, o filme não se ressente do peso extremado dos casos humanos que nos fazem palpitar o coração, não, o que nos vai mobilizar são as emoções vividas por um grupo de crianças resgatadas de uma escola, precisamente por Kevin que, numa decisão corajosa mas muito pessoal, decide desviar o seu caminho de regresso a casa para auxiliar os que começavam a estar cercados pelo fogo. No autocarro, para além das vinte e duas crianças, vai seguir com ele uma professora, Mary Ludwig (America Ferrera). Escusado será dizer que, a partir desse momento, o filme entra num outro nível de impacto estrutural, concentrando agora a acção no que aquelas personagens vão encontrar nas estradas congestionadas e no interior da floresta como obstáculos maiores da sua progressão. E as coisas vão descambar, não apenas no percurso da sua pura, dura e ingrata luta pela sobrevivência, mas igualmente no capítulo do isolamento que os atinge, dado que a partir de certa altura as comunicações via rádio passam a não funcionar. Perdidos no Inferno, perdidos nas chamas que os ameaçam de morte e perdidos na Natureza que devido ao fumo denso faz o dia parecer noite. Tecnologia, zero! Materiais a entrar em colapso e o desespero dos corpos e das almas passam a ser a fórmula dantesca cujo desenlace não se adivinha feliz. Mas há sempre uma esperança, e neste caso a maioria dos espectadores já sabe como tudo acaba e nada mais fica para assinalar. Tratava-se assim, sejamos justos, de um projecto arriscado, porque vivia da premissa de uma certeza antecipada que, na prática, qualquer que fosse a volta dada, reduziria o poder da ficção a uma segura mas redutora interpretação da realidade vivida. Precisava por isso de mais qualquer coisa para nos fazer entrar dentro daquele autocarro, sentir as angústias dos seus ocupantes, precisava provavelmente da polarização de um ou outro conflito dramático subjacente na planificação dos relatos do combate ao fogo, quer na frente quer na retaguarda do exército de bombeiros profissionais cujos movimentos partilhamos com algum pormenor. Momentos de intensidade e pressão emocional que foram, aliás, dirigidos com inegável segurança mas ao jeito da reconstituição do que são as normas e prioridades das reportagens jornalísticas, pelo menos no conceito das melhores, ou seja, as que rejeitam e evitam o sensacionalismo.

Por fim, não podemos deixar de destacar a qualidade e perícia com que os efeitos visuais e as atmosferas de fogo e brasa foram concebidos. No que diz respeito ao elenco, o destaque óbvio vai para Matthew McConaughey, que consegue compor a sua personagem sem exageros de overacting, mesmo quando algumas vezes as circunvoluções da acção puxam os actores para essa rampa perigosa onde manter o equilíbrio da representação se mostra missão quase impossível. Há que dizê-lo, o actor está impecável no papel de um proletário americano que só por razões de força maior se pode considerar um herói.

«O Autocarro Perdido» estará disponível no streaming da Apple TV+ a partir do dia 3 de Outubro de 2025.

Título original: The Lost Bus Realização: Paul Greengrass Elenco: Matthew McConaughey,America Ferrera, Yul Vazquez Duração: 129 min. EUA, 2025

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