Em «Memória» (2023), Sylvia (Jessica Chastain) leva uma vida aparentemente normal, bem organizada e autossuficiente, mas tem comportamentos obsessivos relacionados com o medo que sente. Indicia também vários traumas e vícios, como ilustrado pelo encontro de “Alcoólicos Anónimos”. A lente de Michel Franco coloca em evidência a forma como a mulher fecha a porta e liga o alarme, ou receia a presença de estranhos na envolvência da sua casa; e ainda o desconforto que manifesta em eventos sociais. Não deixando, todavia, de mostrar bastante humanidade e um bom coração.
A sua vida é abalada quando conhece Saul (Peter Sarsgaard), um homem com vários problemas de memória [o que dá nome ao filme], que acredita estar ligado a um acontecimento traumatizante do seu passado. A sua relação começa de forma estranha e raivosa, mas acaba por sofrer um volte-face quando a irmã Olivia (Merritt Wever) a faz ver a razão. E se a própria memória de Sylvia a estiver a enganar?
Num argumento simples e direto, sem grandes diálogos ou panorâmicas, «Memória» (2023) ilustra a forma como a consciência que temos de nós próprios abala a nossa participação na realidade que nos rodeia. A desorientação de Saul não é apenas mental, mas também física e comportamental, completamente perdido num mundo muito complexo para alguém como ele. E nem a preocupação do irmão Isaac (Josh Charles) acalma a turbulência que contamina os seus dias.
A solução evidente para a família é contratar Sylvia, assistente numa outra associação, que também agradece o dinheiro extra. No entanto, aquela que é inicialmente uma relação meramente profissional, passa a assumir outros contornos, perante a fragilidade gigante dos protagonistas. Embora com dores diferentes: se a uma falta a memória, à outra atormenta-a a lembrança dos abusos da adolescência – e é na sua diferença que, de alguma forma, descobrem a paz possível na presença um do outro.
Pausada e determinada, a ação vai-se sucedendo sem pressas, colocando os diversos intervenientes fora da posição habitual. Anna (Brooke Timber) a filha de Sylvia partilha muitos momentos com a restante família, incluindo com a avó com quem não mantém qualquer relacionamento; Sylvia e Saul exploram novas sensações, ainda que com algum receio; Olivia e o marido são confrontados, em frente aos filhos, com verdade que não querem que sejam conhecidas.
Uma viagem sensorial, «Memória» (2023) oferece uma visão íntima sobre o poder da mente, e a sua limitação ou oportunidade. Com o elenco a um bom nível, entrega uma história cativante e que combina, ao mesmo tempo, a alegria e a tristeza. Porque o cinema também pode ser um espelho que mostra a vida tal como ela é (embora não totalmente, como é óbvio), sem artimanhas complexas da ficção ou grandes twists.
Título original: Memory Realização: Michel Franco Elenco: Jessica Chastain, Peter Sarsgaard, Josh Charles Duração: 103 minutos Estados Unidos, 2023
[Texto publicado originalmente na Revista Metropolis nº108, Julho 2024]

