Quando subir ao palco do Palácio dos Festivais de Gramado, esta noite, para receber o troféu Oscarito, láurea honorária pelas suas quatro décadas de devoção à arte, a paraibana Marcélia Cartaxo vai passar em revista os filmes que fizeram dela um farol de excelência na América Latina. «A Hora da Estrela» (1985), que lhe rendeu o Urso de Prata da Berlinale, é o título mais lembrado da sua filmografia. Nesta terça-feira, entretanto, «A Mãe» há de se destacar na lembrança gramadense, uma vez que ela saiu de lá laureada, com o Kikito, por essa doída película sobre o calvário materno.


Sente-se uma brisa lúdica, uma única vez, pelo meio das chamas sociológicas que fazem «A Mãe» ferver na tela. Isso ocorre num diálogo entre a protagonista, a vendedora Maria (interpretada por Marcélia Cartaxo de maneira esplêndida), e um pastor, no decurso de um cafezinho numa padaria de São Paulo. O pregador unge os versículos de Cristo com rimas ricas e redondilhas. Ao ouvi-lo orar, Maria interroga: “Poeta é gente estudada?”. O religioso, a citar o trovador Patativa do Assaré, num dó de peito, retruca um “nem sempre”: “É como se o poeta tivesse nascido com palavras dentro dele”. Pronto. Temos um refresco. É uma lufada de esperança na narrativa de descida ao Inferno que foi aplaudida no Festival de Málaga, na Espanha. Ela foi coroada com o troféu de Kikito de Melhor Atriz (Marcélia), Melhor Design de Som (Ricardo Zollmer) e Melhor Realização, dado a Cristiano Burlan, no 50° Festival de Gramado, em agosto de 2022. Três anos se passaram e não se esquece da sua abrasiva potência.

   
Ao ganhar o prémio principal de Melhor Longa no festival É Tudo Verdade, em 2013, com «Mataram Meu Irmão», Cristiano Burlan revirou as páginas do filão chamado Álbum de Família no documentário brasileiro. O termo, usado para filmes como «Person» (2007), «Diário de uma Busca» (2010) e «Elena» (2012), classifica as narrativas em que cineastas falam de parentes, criando uma espécie de autoimolação, de tragédia pessoal ou de crónica em primeira pessoa. O que Cristiano fazia era falar de uma perda fraterna, introduzindo a violência praticada na periferia do Brasil a um universo temático em que a brutalidade, em geral, só era citada, em alusões à ditadura (1964-1985). Burlan voltou ao tema para falar do assassinato da sua mãe, em 2017, com «Elegia de um Crime». Ali, partia de um conceito biográfico: “Minha história não é uma exceção. A impunidade, o preconceito, a desigualdade, a mídia e os governos transformam essas vidas em números. Mas por trás das estatísticas existem irmãos, amigos, mães e filhos.”


O que o devastador «A Mãe» faz é deixar a ficção se contagiar desse pensamento – e dessas cicatrizes do diretor. Rodado em São Paulo, no início de 2020, com locações no centro e no Jardim Romano, a longa acompanha a jornada de Maria em busca do seu filho, o estudante Valdo (Dunstin Farias), desaparecido. Dizem que o rapaz foi assassinado por policiais militares durante uma ação na vila onde mora. Em busca de descobrir o paradeiro do filho, Maria enfrenta diversas adversidades. Ela coleciona encontros, por vezes doces (como a ativista vivida por Helena Ignez), por vezes ásperos, como é o polícia civil encarnado com astúcia por Carlos Meceni (um dos atores mais precisos de seu país).

Burlan dribla todo e qualquer trejeito do “cinema piquete”, que aposta em denúncia da exclusão, enxertando soluções dramatúrgicas inusitadas em lugares comuns vistos desde «Notícias de uma Guerra Particular» (1999). Essa singularidade já se faz notar na atitude de Maria, que foge do perfil maternal de carpideira para montar um ser destemido, sem medo do enfrentamento.

Gramado segue até o dia 23. Na segunda-feira foi apresentada a primeira fornada de curtas-metragens em competição. A produção mais audaciosa dessa leva de arranque de pílulas é «Quando Eu For Grande», realizado por Mano Cappu, do Paraná. A sua geometria de acertos (e de afetos) é das mais multifacetadas. O enredo segue o menino Gabriel, de seis anos, e a sua mãe, Vera, que retornam para casa, carregados de dúvidas e incertezas sobre o futuro, de uma visita. Quem eles visitaram e onde? Isso fica evidente no instante em que Vera busca não desmoronar ao ser questionada pelo filho se, quando for grande, ele também terá o mesmo destino que os outros homens da família: o cárcere. Gil Baroni está na produção desse delicado estudo sobre a sina do determinismo.

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