Pouco há na pessoa de Antonina Miliukova para além do facto de ter casado com um dos maiores compositores do seu tempo: Piotr Ilitch Tchaïkovski. O que nos chegou desta personagem, em relatos da própria e do compositor e alguns comentários em cartas de pessoas próximas, dá-nos a conhecer uma mulher emocionalmente instável, pouco inteligente e com um penchant pela fama.  Antonina terá sido – atrevo-me a dizê-lo – aquilo a que hoje chamamos de groupie. Nascida numa família da nobreza russa, mas com fracos recursos financeiros, desde jovem que tentava escapar da família instável e algo alucinada, dobrada sob o jugo de uma matriarca déspota e insensível, escrevendo longas cartas inflamadas a banqueiros, generais, artistas em voga e até a membros da família imperial. É ainda nova, com dezasseis anos, que consegue chegar perto de Tchaïkovski, inscrevendo-se no Conservatório de Moscovo onde o já então famoso compositor lecionava. A sua tentativa de aproximação ainda toma algum tempo e só em 1877, quando Antonina estava perto dos trinta, se consumou o matrimónio. Para os critérios morais e sociais da época, dificilmente uma mulher conseguiria encontrar pretendente com esta idade. Mas este casamento, como é bem patente no filme, servia a outros propósitos.

Kirill Serebrennikov expõe, durante mais de duas horas, as atribulações e o trágico desfecho de um casamento de conveniência que, paradoxalmente, apenas acontece por necessidade de sobrevivência. A homossexualidade de Tchaïkovski pairava como uma espada de Dâmocles sobre a reputação do compositor na opressiva e asfixiante sociedade russa do fin-de-siècle. O opróbrio social, caso a sua orientação sexual fosse exposta, seria suficiente para destruir a sua vida e obra. Um casamento, mesmo que falso, permitiria abafar boatos e sossegar as más-línguas. Subterfúgio muito usado ao longo da História e que viria a se “oficializar”, como estratégia de relações públicas, com os estúdios de Hollywood, que cunham o termo “Lavander marriages”. Mas o peso desta farsa acaba por se revelar demasiado alto tanto para o músico como para a sua mulher. As personalidades frágeis, complexas e algo delirantes de ambos tornam a relação e convivência numa geena.  A menos de um ano de casados e quase sem terem vivido juntos na mesma casa, Tchaïkovski pede o divórcio. Antonina recusa e o compositor volta a exigi-lo um ano depois. Mas as leis vigentes à época não facilitam o processo. O único argumento aceite para dissolução do casamento é o adultério. E, por esta altura, já ambos o tinham cometido em abundância. A par dos amantes clandestinos do marido, havia de igual modo os muitos amantes de Antonina que procurava noutros o que o marido se recusava a lhe dar. Mas uma coisa é fazê-lo, outra é admiti-lo por escrito. Ela recusa-se a assinar os papéis que iriam fazer-lhe perder a única coisa que ela era: ser mulher de um famoso compositor.

 A acção do filme irá desenvolver-se, sobretudo, neste período onde vemos a relação cada vez mais distante dos cônjuges, mediada por amigos, familiares ou advogados. E as constantes tentativas de aproximação de Antonina mais própria de uma fan(ática) do que de uma mulher que quer manter o casamento. Os seus comportamentos maníacos e vesanos vão crescendo, paulatinamente, desembocando numa surreal (e magnífica) cena de dança, dentro de um recurso estilístico de mistura de realidade e imaginação que já tínhamos assistido no anterior filme do realizador, «A Febre de Petrov» (2021). Há, em todo o filme, uma atenção minuciosa aos pormenores, dos cenários e ao guarda-roupa, que tem algo de Visconti. Para além de um quase científico rigor histórico na escolha dos trajes e ambientes, o realizador faz-nos prestar atenção, em longos planos sequência, a delicados toques da realidade quotidiana da época: um piano manchado pela cera que derrete dos círios, uma axila feminina por depilar, a sujidade por baixo das unhas,… Por seu turno, os cenários ampliam e reflectem as emoções das personagens: dos corredores apertados de comboios ou salas de espetáculo e estreitos passeios e ruas que sublinham a asfixia e opressão social; à candura feita de linhos brancos e paredes de cal do refúgio feminino e familiar em Kamenka; à pomposidade delabrée dos lustres e dourados que refulgem a decadência dos vícios privados; ou o progressivo despojamento do lar do casal a espelhar o afastamento e a dissolução da relação. A isto se soma uma mestria no uso subtil da cor que varia consoante os momentos emocionais da protagonista. Num filme que é sobretudo cinzento e pardo por relatar um conto de miséria humana, temos lampejos de cores fortes nos momentos de felicidade: um intenso amarelo no vestido que Antonina usa após o casamento ou o encarnado coral que veste na lua-de-mel ou ainda, o escarlate quando o vai encontrar à Ópera.

Alyona Mikhailova devora todas as cenas com uma entrega total a este papel exigente. Estamos aqui muito longe da versão que vimos de Antonina em «The Music Lovers» (1971, Ken Russell) interpretada por Glenda Jackson. Esta Antonina é visceral e deixa transparecer, mesmo quando por trás de um véu, uma miríade de fantasmas interiores. Fantasmas esses que levaram a verdadeira Antonina a ser internada num hospício em Oudelnaia, em São Petersburgo, onde ficou, só e abandonada, até à sua morte em 1917, um quarto de século depois do falecimento do seu idolatrado marido. A representação de Mikhailova é de tal maneira fremente e intensa que todas as outras personagens se apagam. E talvez aqui resida uma das fraquezas do filme. Odin Lund Biron tem uma assombrosa parecença física com o compositor mas pouco nos dá a conhecer do que era a personalidade de Tchaikovsky que se sabe ter sido igualmente complexa. Teria sido interessante haver mais cenas e diálogos entre os dois protagonistas  para acrescentar camadas emocionais à relação do casal. O restante elenco são meros adjuvantes com pouca presença, servindo apenas de espoletas à acção. Mas, ainda assim, este é um filme com um peso e gravitas que atesta a chegada à maturidade de Kirill Serebrennikov.

Título original: Zhena Chaikovskogo Título internacional: Tchaikovsky’s Wife Realização: Kirill Serebrennikov Elenco: Alyona Mikhaylova, Odin Lund Biron, Filipp Avdeev Duração: 143 min. Rússia/França/Suíça, 2022

[Crítica originalmente publicada a 20 de Janeiro de 2025]

A MULHER DE TCHAIKOVSKY
13 de junho | 22h TVCine Edition

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