Vencedor do troféu César honorário em 2006 pelo conjunto de uma carreira que teve nas comédias românticas o seu maior apelo, o londrino Hugh John Mungo Grant recebeu um Golden Globe pelo filme que lhe garantiu o sucesso fora do Reino Unido: «Quatro Casamentos E Um Funeral» (1994). Virou, ali, o modelo de Romeu para variadas Julietas (entre elas, Julia Roberts e Drew Barrymore) que despontavam à luz do empoderamento na segunda metade dos anos 1990. Com o avanço das lutas feministas, ele foi obrigado reinventar-se e desconstruir a masculinidade, o que fez com brilhantismo em «Era Uma Vez Um Rapaz» [«About a Boy»] (2002), a partir da literatura de Nick Hornby. E soube criar uma persona sexista intragável (mas, irresistível) na franquia Bridget Jones (2001-2004). Foi hábil ainda em travar a parceria com realizadores autorais de estéticas bem diferentes, como Stephen Frears (que arrancou dele uma atuação magistral em « Florence, Uma Diva Fora de Tom» e Guy Ritchie (em «The Gentlemen»). Pouco se fala, entretanto, da excelência que alcançou, na juventude, sob a direção de James Ivory, nos hoje esquecidos «Maurice» (1987) e «Os Despojos do Dia» (1994). São finos exemplares da sua destreza para compor figuras fragilizadas pelas escolhas da vida, assim como o telefilme «Our Sons» (1991). É esse Hugh Grant multifacetado, imune a fórmulas da persona de “namorado ideal”, que aflora em «Heretic» («Herege»), de Scott Beck e Bryan Woods, um thriller “horrorífico” que iniciou o seu percurso comercial nas telas do Festival de Toronto. É um espetáculo que dá medo, muito, só que mais na troca de ideias, nas reflexões explosivas, dos que pelo jump scare.


Os seus realizadores são argumentistas íntimos das dinâmicas do medo, com títulos como «65» (2023) e a saga “A Quiet Place” (2018-2024) no seu currículo de scripts. Filmaram antes o assustador «A Casa do Terror» («Haunt»), de 2020. Demonstram firmeza na condução do elenco, à medida do carisma de Grant.
Como é bom rever o astro de «Notting Hill» (1999) fora do seu habitat, e a arriscar-se por veredas sombrias. Na trama, repleta de twists, duas jovens missionárias devotas em espalhar a fé (vividas por Chloe East e Sophie Thatcher) acabam presas na casa de um homem misterioso e diabólico, o Sr. Reed (Grant, na flor da atuação). Ele parece ser apenas um pacato homem dos subúrbios, aposentado, a viver perante o tabuleiro a comer a sua torta. A aparência de bom sujeito muda no momento em que se revela haver uma tranca tecnológica incapaz de ser aberta por vias normais no seu lar. Pena que as duas missionárias só percebam isso tarde demais. Na arena armada por ele, as jovens são forçadas a participar num jogo perturbador que desafia a sua fé e põe em xeque tudo aquilo em que acreditam. É um suspense regado a reflexões sobre a fragilidade das nossas convicções do dia-a-dia, num debate sobre teologia e sobre empatia.

A monstruosidade que Grant encarna está na sua retórica diabólica, capaz de desafiar a crença alheia na caridade. A montagem eletrizante de Justin Li administra com habilidade o argumento palavroso que tem entre mãos, numa sábia utilização da trilha sonora de Chris Bacon para elevar a tensão. A cinematografia de Chungh-hoon Chung tem no chiaroscuro o seu trunfo.

Título original: Heretic Realização: Scott Beck, Bryan Woods Elenco: Hugh Grant, Sophie Thatcher, Chloe East, Topher Grace Duração: 111 min. EUA/Canadá, 2024

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