Russell Crowe e Rami Malek brilham em «Nuremberga», num duelo teatral sobre a culpa, vaidade e história. Porém, James Vanderbilt transforma um dos julgamentos mais sombrios da humanidade num espetáculo de ego e cinismo.

De facto, «Nuremberga», de James Vanderbilt, é um daqueles filmes que cheiram a pó de arquivo: uma mistura de tribunal de História com verniz de Hollywood. O realizador, que foi argumentista do genial «Zodiac», de David Fincher, parece ter trocado o mistério da verdade pela vaidade do “drama de prestígio”. Aqui, o julgamento dos crimes nazis é menos uma catarse da civilização e mais um duelo de testosterona entre o psiquiatra americano Douglas Kelley (Rami Malek) e o criminoso de guerra Hermann Göring (Russell Crowe).

Kelley, interpretado por Malek com aquele olhar entre a curiosidade e a paranoia, é o homem encarregado de garantir que os acusados não se suicidem antes de enfrentarem a justiça. Ironia das ironias: o que mais o fascina neles é precisamente a morte ou, melhor, o que leva um homem a matar milhões e ainda conseguir dormir descansado. Vanderbilt filma-o como um prestidigitador moral: um tipo que adivinha cartas no comboio e acha que pode decifrar o mal com base em expressões faciais e testes de Rorschach.

Do outro lado da mesa, Russell Crowe surge monumental, literalmente; o enquadramento mal cabe nele na perfeição. O seu Göring é um pavão fascista, vaidoso e espirituoso, que sabe que está condenado, mas ainda assim exige respeito, tal como um ator que não quer sair de cena sem o aplauso. Crowe dá-lhe um charme perigoso, um sarcasmo calculado, uma espécie de demónio com boa dicção. É, de longe, o melhor do filme.

O problema é que “Nuremberga” é um filme em que o realizador parece demasiado satisfeito consigo próprio. O filme transforma o tribunal mais importante do século XX num palco com luzes suaves, cigarros estilizados e diálogos ágeis, como se Aaron Sorkin tivesse escrito “Doze Homens em Fúria” depois de ter visto a série «The Crown». Tudo é elegante, fluido, assistível e, portanto, superficial.

Quando Vanderbilt introduz imagens reais dos campos de concentração, com corpos mutilados e olhos vazios, o contraste é brutal. O horror autêntico faz colapsar a estética polida do resto do filme. De repente, percebemos o vazio do espetáculo. Porque «Nuremberga», o filme, é mais fascinado pelo teatro do poder do que pela verdade da barbárie. É uma ópera moral em que o som das vozes sobrepõe-se ao silêncio das vítimas.

Há uma ideia interessante — embora mal explorada — no centro de tudo: a de que tanto o médico como o monstro partilham o mesmo vício, o narcisismo. Ambos querem ser lembrados. Göring como o último dos grandes alemães; Kelley como o primeiro a explicar o mal com métodos científicos. Vanderbilt insinua isso, mas acaba por se deixar encantar pelo duelo em vez de o desconstruir.

É um filme sobre o ego mascarado de ética. E talvez seja essa a sua ironia involuntária: «Nuremberga» fala sobre o espetáculo da justiça e acaba ele próprio prisioneiro do espetáculo.

Há um momento em que Göring, com um sorriso venenoso, diz: “Hitler fez-nos sentir alemães novamente”. A frase arrepia porque ecoa em demasiados lugares do presente. Vanderbilt quer que vejamos esse reflexo e tem razão. Só que o faz de uma forma tão suavezinha, tão moralmente controlada, que nunca sentimos o risco.

No fim, «Nuremberga» é um filme que tenta condenar o mal sem sujar as mãos. É bem filmado, bem interpretado e bem-comportado, e isso é precisamente o problema do último filme de Vanderbilt. O horror não devia ser tão fácil de ver, nem o mal tão fotogénico.

Título Original: Nuremberg Realização: James Vanderbilt Com: Rami Malek, Russell Crowe, Michael Shannon Origem: EUA Duração: 148 minutos Ano: 2025

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