Na vastidão pouco povoada do Novo México, região dominada por paisagens desérticas (hoje um dos cinquenta Estados dos EUA), anexada pela força das armas na sequência da chamada Guerra Mexicano-Americana (1846-1848), podíamos muito bem encontrar uma cidade imaginada a partir de diferentes localizações a que o cineasta Ari Aster deu o nome de «Eddington», nem mais nem menos o nome da sua muito, mas mesmo muito longa-metragem que levou ao Festival de Cannes em 2025. São quase duas horas e meia em que se desfraldam alguns controversos assuntos da actualidade passada e presente (e, naturalmente, do futuro próximo), aqueles que geram furor e ganham o seu lugar na espuma dos dias mediáticos em países que se consideram avançados do ponto de vista da comunicação de massas. No argumento, faz-se igualmente sentir o modo como se podem gerar conflitos de natureza civilizacional, naturais ou artificiais, no quotidiano de um mundo que ainda não se preocupa com a sua extinção pura e dura, nem com o desaparecimento do seu modo e estilo de vida, mas inventa dia após dia problemas e conspirações que, na sua gradual vertigem, podem descambar e empurrar os que nele vivem para o abismo, como sucede aos búfalos que faziam parte da proposta iconográfica do primeiro cartaz deste filme (o que foi apresentado em Cannes). Nele víamos os ditos animais a cair desamparados no vazio de um precipício, segundo uma obra concebida pelo artista e activista David Wojnarowicz que, a propósito do seu projecto artístico e identificando-nos com a sorte dos referidos mamíferos, avançou com esta reflexão: Pushed into the unknown by forces we cannot control or even understand (Empurrados para o desconhecido por forças que não podemos controlar ou até compreender).” Diria que este depoimento podia funcionar como cartão-de-visita, servir de palavra de ordem ou ainda de ideia síntese para resumir, introduzir e até dar algum sentido aos principais vectores da proposta narrativa de “Eddington” e, já agora, nem sempre pelas melhores razões. Infelizmente, parece de propósito, o dito cartaz dos búfalos e da ribanceira fatal foi substituído por um novo, que não passa de uma salganhada de cartoon, igual a muitos outros para vender pipocas, bebidas gasosas e filmes de acção, coisa que este filme dificilmente sustenta.


Mas vamos ao que o filme nos oferece de realmente importante para reter a nossa atenção no prolongado quadro narrativo. Primeira constatação, a acção decorre em 2020, ou seja, em plena pandemia de Covid-19. Na cidade de Eddington, a maioria dos cidadãos usa máscara. Todos? Não…! Há um que a devia usar, nem que fosse para dar o exemplo, mas não usa porque, segundo argumenta, não consegue respirar com ela colocada na boca e nariz por ser asmático. E dito isto, meninos e meninas, senhoras e senhores, logo a abrir e em breves minutos fica desenhado o perfil psicológico e profissional do protagonista número um, Joe Cross (Joaquin Phoenix), ou seja, um aplicado cabeça-dura, mas sempre valoroso xerife local. Para os devidos efeitos, um verdadeiro funcionário público ao serviço do povo. Este homem vive com uma jovem mulher que aparentemente não faz nenhum, Louise (Emma Stone), a não ser umas bonecas de pano medonhas que metem medo ao susto. Diz que as faz desde criança, o que não augura nada de bom para a sua saúde, digamos, espiritual. Na verdade, sofre de depressão, e cada vez que aparece com ar aluado ficamos na expectactiva de que a sua intrigante persona possa dar corpo e voz a um episódio mais ou menos dramático (há quem fale de histeria). Mas um mal nunca vem só, e a mãe desta rapariga, Dawn (Deirdre O’Connell), não lhe fica atrás. No campeonato da falta de controlo emocional ela até consegue superar a filha, viciada que está em redes sociais e nas suas mais do que improváveis e ridículas narrativas de feição conspirativa. Tudo se conjuga para o desastre nos meandros desta família, no seio da qual circulam silêncios sobre factos anteriormente ocorridos que, diz quem pode, poderiam explicar muito do que ficámos a saber e do que se virá posteriormente a constatar. Para dar mais sal e pimenta a esta história de uma cidade onde o mau e o menos mau se preparam para um duelo final de alto gabarito (isso fica claro desde cedo), no outro lado da barricada social e ideológica, ou melhor, no lado oposto ao ocupado pela figura da autoridade policial, está um político, Ted Garcia (Pedro Pascal), autoridade civil e mayor eleito (mas em fim de mandato), rapaz hispânico, digno representante da chamada pinta latina e, last but not least, zeloso cumpridor das regras de segurança impostas pelo vírus pandémico. Só que, segundo Joe Cross, não presta para as funções de Presidente da Câmara. Por esta razão, o xerife vai candidatar-se ao cargo e ao poder que ele ocupa, contra as expectactivas até dos seus subordinados mais próximos, policiais que podiam integrar uma breve e ilustrada caderneta de cromos sobre homens da lei segundo os padrões do American way of life, na versão anglo-saxónica e afro-americana, curiosamente numa área geográfica de forte implantação latina e onde vivem descendentes de ancestrais populações nativo-americanas, entre outras, os Pueblo, os Navajos e os Apaches. Escusado será dizer que, para além da variedade de especiarias, um filme com a ambição de enfiar o Rossio e a Betesga no mesmo saco não podia dispensar alguns ingredientes calientes e um molhinho especial que desse sabor a esta ficção que a partir de certa altura caminha a passos largos para uma churrascada de violência no deserto. Por isso, para além dos conflitos de base, os produtores inventaram outros, urdidos por activistas que aparecem a berrar em voz alta slogans a favor do movimento Black Lives Matter, mais uma série de plots e subplots protagonizados por estas personagens secundárias mas muito militantes.


Por seu lado, a mulher de Joe Cross há-de carregar voluntariamente a sua cruz (longe do Cross/Cruz, apelido do marido) e aproxima-se de um demagogo evangélico, Jefferson Peak (Austin Butler) que, verbalizando uma série de lugares-comuns da filosofia de pacotilha, incentiva os que sofreram abusos sexuais a juntar-se ao rebanho. Entretanto, de entre as fileiras dos mais contestatários que invadem as ruas em manifestações alegadamente não autorizadas, irá destacar-se pouco a pouco uma figura de comportamento sinuoso, cuidadosamente reservada, que no final dos finais salta da relativa sombra para um proeminente lugar ao Sol e que irá surpreender quem ainda não se surpreendera com as mil e uma circunvoluções de «Eddington», o filme. Mas há mais! Todavia, por aqui me fico, para que as surpresas fiquem para quem as quiser visionar. Regressando apenas por breves palavras ao campo da análise fílmica, ao deve e haver ficcional, direi que Joe Cross planeara uma solução para limpar a cidade dos bad guys. Não passa de uma má decisão, e ele acaba sozinho contra o mundo a disparar contra fantasmas que mais parecem ninjas de um jogo de vídeo deportados ou reciclados para um western pós-moderno. Felizmente (infelizmente para ele), já não dá para acreditar nas proezas nem na infalibilidade de um Rambo nos dias que correm (na verdade, nunca deu, mas enfim).     


Em resumo, de uma coisa não podemos acusar Ari Aster, ou seja, o homem sabe rodear-se de gente capaz e muito competente. Por exemplo, entre outras áreas profissionais, na Direcção de Fotografia, na Direcção Artística, nas localizações de rodagem e na escolha do elenco, onde encontramos um grupo muito completo de actores que não se importam de arriscar nestes projectos, não digo de arte e ensaio, mas com um visível pendor pessoal no quadro industrial americano. Nada contra, há inúmeros exemplos de obras que assim foram concebidas, deram frutos, e alcançaram resultados compatíveis com as melhores regras de exigência sem ferir as expectactivas de exploração comercial. Não obstante, na filmografia do realizador sempre houve um qualquer fio que, uma vez esticado, o faz encalhar e muitas vezes, desgraçadamente, acaba por fazê-lo espalhar-se ao comprido. Isso já era patente no filme anterior, «Beau Is Afraid» («Beau Tem Medo»), 2023. E mesmo nos dois que o precederam, «Hereditary» («Hereditário»), 2018 e «Midsommar» («Midsommar: O Mal Não Espera a Noite»), 2019, já se sentia ou pressentia o mesmo. Repito, não lhe faltam meios ou bons recursos humanos. Parece-me, sim, existir uma obstinada vontade de ir contra a corrente descurando aspectos essenciais da estrutura narrativa e da correspondente articulação com as principais linhas da acção, como se o cineasta insistisse numa certa e falaciosa liberdade sem limites, equivalente ao negacionismo de não usar “máscara” perante o perigo de contaminação, sobretudo quando a real empreitada e as mil e uma circunstâncias de produzir um filme com legítimas ambições autorais mais o exigiam.

Título original: Eddington Realização: Ari Aster Elenco: Joaquin Phoenix, Pedro Pascal, Emma Stone, Austin Butler, Clifton Collins Jr., Deirdre O’Connell, Luke Grimes, Micheal Ward Duração: 148 min. EUA/ Finlândia, 2025

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