Na sequência do seu «Im Schatten» («Nas Sombras», 2010), o realizador Thomas Arslan, além de pegar na figura circunspecta de um fora-da-lei com nome de ressonâncias clássicas, Trojan, contratou o mesmo actor, Misel Matisevic, integrando personagem e intérprete na sua nova incursão pelo mundo do crime organizado, o meticulosamente planificado «Verbrannte Erde» («Terra Queimada», 2024). No presente filme, Trojan regressa a Berlim, e ali cada snack-bar, cada quarto de hotel, cada parque de estacionamento e cada rua ou avenida são lugares fechados em que na melhor das hipóteses se sobrevive aos caminhos minados do destino que desembocam numa espécie de muro ou beco sem saída, espaços urbanos onde fatalmente surgem potenciais ameaças e situações armadilhadas que dificultam cada passo dado, cada acção planeada ou por planear. Figuras da noite como o protagonista e seus cúmplices são desconfiadas por natureza. Receiam cada parceiro nas equipas reunidas para cumprir os mais inusitados golpes. Relações difíceis que se ampliam na sombra de intuições sobre o carácter deste ou daquele, por mais garantias atribuídas a partir do curriculum marginal e profissional dos homens e mulheres envolvidos. Na verdade, poderíamos alguma vez falar de confiança mútua quando nos referimos a um esquema de interacções mais ou menos forçadas e ditadas pelas circunstâncias e, sobretudo, marcadas como as cartas de um jogo ilícito? Claro que não!
Todos os membros da equipa formada para concretizar o roubo de um quadro célebre (roubo que esconde um golpe canalha concebido por um colecionador de arte que na prática não passa de um bandido ainda mais manhoso do que os operacionais que contrata) possuem as qualidades requeridas a um grupo de gangsters experimentados. Mas essas aptidões esbarram quase sempre com o sentimento de que caminham sobre brasas, levantando as cinzas de uma «Terra Queimada». Por isso nesta ficção não iremos encontrar nem bons nem maus, apenas maus, sendo uns piores que outros. Traidores em potência circulam igualmente entre eles, e a sua “fraqueza” fá-los vender a alma ao diabo, particularmente quando as coisas se descontrolam para além do previsto. Nada que nos espante se pensarmos que a maioria dos criminosos actua no limite daquilo que consideram ser o seu último serviço. O risco inerente a uma carreira no crime já não compensa. Preferem jogar pelo seguro, mesmo que isso signifique matar ou ver matar o pretérito ou actual companheiro de armas. Há de facto um curioso sentimento crepuscular numa ou outra acção, num ou outro diálogo, que combina bem com as atmosferas soturnas e nocturnas de uma cidade que alberga na escuridão e na meia-luz quem escolheu viver «Nas Sombras». Negro de “noir”, negro da cor dos abismos da alma humana, negro das silhuetas sem rosto. Não deixa de ser curioso (de certo modo isso constitui uma das fragilidades do argumento) que não haja polícia para intervir e enfiar uma palhinha que fosse na engrenagem. Bem vistas as coisas, havia razões para ela se manifestar. Por exemplo, durante o planeado assalto, os gangsters conseguem neutralizar dois seguranças e dois funcionários de um armazém que acabam de cara voltada para o chão e algemados com as mãos atrás das costas. Depois do assalto ficaram caladinhos, engoliram em seco e seguiram em frente…? Mais, há uma advogada do museu roubado que reúne uma quantia avultada para o resgate do quadro. Pelo menos na aparência actua com perfeito conhecimento da instituição roubada sem que algum indício nos diga que as autoridades policiais foram informadas do ocorrido. Porém, neste caso iremos ver mais adiante a razão de ser deste “silêncio”.

Dito isto, aqui vai a pergunta que se impõe: não há polícia(s) na Alemanha que possa(m) dar corda aos sapatos por causa de uns milhões de euros, para além do mais, por causa de um roubo com ramificações a diversos submundos do crime? Por muito que isso possa parecer uma opção, legítima, mas difícil de engolir, estas interrogações de quem se habituou a questionar com minúcia certas opções narrativas não apagam o prazer da fruição fílmica que se retira da visão das grandes linhas da acção que aqui acabam quase sempre por vencer e prevalecer na geométrica estruturação fílmica que descreve de forma exemplar o que acontece no perímetro de um golpe bem urdido, mas eventualmente mal resolvido. Deste modo, o percurso atormentado dos que executam o crime acaba por seduzir os espectadores para, digamos assim, o lado errado da barricada. Finalmente, o vulnerável e ilusório lado certo dá um ar da sua graça quando acabamos a desejar que os criminosos se safem assumindo o lado mais canalha e individualista da equação criminosa, lá está, nas barbas da polícia. Todavia, como Trojan muito bem disse ao falar com uma sobrevivente da equipa que o acompanhou no golpe, qualquer final feliz, para além de bizarro, seria muito, mas mesmo muito arriscado! Em suma, um belo e seguro filme de acção, no melhor sentido da palavra.
Destaque especial para o conjunto dos valores de produção, dos quais saliento a Direcção de Fotografia de Reinhold Vorschneider e a Montagem de Reinaldo Pinto Almeida.
De igual modo, destaque para os actores principais e secundários que, mesmo num contexto que merecia maior flexibilidade na criação das personagens, acabam por defender com muita competência a composição “sombria” mas eficaz que corresponde seguramente ao que lhes foi pedido pela realização.
Mais uma imprescindível estreia em sala e no circuito comercial português. Mais uma boa iniciativa de distribuição da produtora The Stone and the Plot.
Título original: Verbrannte Erde Realização: Thomas Arslan Elenco: Misel Maticevic, Marie Leuenberger, Alexander Fehling Duração: 101 min. 2024, Alemanha
Fotos: © SchrammFilm