No mais recente filme do realizador, argumentista e actor nascido em Gotemburgo (Suécia) Gustav Moller, «Vogter» («Filhos»), 2024, damos conta de uma peregrinação nada exemplar, não obstante justificada pelo esforço de compreensão relativo ao quadro de contradições e abismos da natureza humana que assaltam o pensamento e comportamento de uma guarda prisional de nome Eva (magnífica interpretação da actriz dinamarquesa Sidse Babett Knudsen). Estamos numa prisão da Dinamarca onde prevalecem diversos graus de segurança. De início seguimos o dia-a-dia de Eva no chamado Sector Cinco, um sector que contrasta com o Centro Zero destinado a reclusos perigosos com um cadastro difícil de enquadrar em qualquer padrão civilizacional digno de nota. No decorrer da acção, pormenores introduzidos no argumento fazem a diferença e pontuam, sem cair na demagogia fácil, o fosso que existe entre os sectores referidos. No primeiro, onde se encontram reclusos menos perigosos, Eva verbaliza logo pela manhã a quem abre a cela um sonoro “Bom dia!”, e os reclusos respondem sem hesitações de forma igualmente cordial. Todavia, quando Eva pede para sair daquela área de modo a integrar o Centro Zero, uma vez lá chegada já ninguém lhe retribui o “Bom dia!”, antes pelo contrário. Prevalece ali o silêncio entre as partes ou então assiste-se a laivos de ameaça latentes no olhar rancoroso do preso, na maior parte dos casos um ser agressivo, naquilo que podemos designar como um permanente desafio ao outro, um exercício de relativo e algo ilusório poder pessoal contra o quase absoluto poder institucional. Mas como, quando e porquê vai parar Eva a esse lugar infernal, onde cada minuto pode ser o primeiro e o último e a esperança de redenção parece ser palavra vã? Na verdade, o primeiro quarto de hora dera-nos a conhecer as rotinas da prisão que se perfila modelar, quer para guardas quer para reclusos. Temos até oportunidade de descobrir, com algum espanto diga-se, que na sala dedicada aos guardas se pode ouvir o famoso e romântico “Clair de Lune” de Claude Debussy. E nós, que ouvimos em Portugal relatos do interior das prisões que nos fazem ecoar na cabeça qualquer coisa próxima de um heavy metal pimba de segunda categoria, dizemos para os nossos botões: aquela prisão na Dinamarca nem parece um estabelecimento prisional onde se priva a liberdade a cidadãos como quaisquer outros mas que merecem lá estar, salvo erros judiciais que os há e não são poucos. No entanto, prisões que de certo modo limitam igualmente a liberdade dos profissionais que zelam pelo cumprimento das penas atribuídas.

Seja como for, a esta imagem de acutilante “normalidade” sentida nas sequências iniciais segue-se aquele que para os devidos efeitos constitui o principal conflito dramático do filme. Eva descobre que acabou de chegar um rapaz que ela já conhece, e não só conhece como reconhece ser o autor de um crime que afectou de forma irreversível a sua vida. Trata-se não apenas de um “simples” delinquente, mais um marginal que se quer anónimo e a quem se atribui um número, mas de um assassino particularmente violento e com características sociopatas. Podemos mesmo ir mais longe e classificá-lo como um candidato a psicopata. Ele, Mikkel (Sebastian Bull), será encarcerado no explosivo Centro Zero, e esta será a razão que leva Eva a sair de um sector mais ou menos seguro e rotineiro para essa ala de altíssima segurança. Eva está assim determinada a fazer a vida negra ao recluso cujo crime a marcou para sempre. Todos os passos e gestos que irá dar a partir de então serão calculados em função de uma estratégia de vingança que, levada ao limite do possível, acaba por empurrá-la para um beco sem saída, onde irão imperar sucessivas doses de chantagem engendradas por Mikkel. Neste contexto, Gustav Moller e o co-argumentista, Emil Nygaard Albertsen, conseguem erguer um corpo ficcional absolutamente irrepreensível, mesmo quando alguns aspectos da relação guarda/recluso nos parecem difíceis de engolir.

Pouco a pouco, a mudança de um registo racional para os meandros sombrios do emocional abre as portas aos caminhos movediços e cruzados de uma relação de favores escudada pelas consequências de um acontecimento violento que ambos viveram. Na verdade, Mikkel usa expedientes de natureza legal, que junta ao pouco que sabe sobre as motivações do seu anjo negro, para melhorar a sua posição enquanto recluso. Manobras que lhe irão dar a sensação de força no confronto com a guarda que manifestamente não parecia preparada para viver um pesadelo de extorsão sem poder evitá-lo de forma cabal. Eva, que saberemos mais para a frente ser mãe de um filho assassinado na prisão, passa a ocupar o lugar do anjo vingador, personagem que na dupla qualidade de mulher/mãe assume em “Filhos” um complexo e até certo ponto falível rancor espiritual contra quem de forma indirecta lhe fez mal. Mas, ao invés de punir algo que ficou mal enterrado no passado, acaba por perceber com amargura a necessidade de exercer uma introspecção espiritual, seguida de uma confissão capaz de esclarecer no presente a justeza e razão profunda da sua “missão”. Desse ponto de vista, a sequência na capela da prisão, onde o pastor a encontra recolhida, constitui a síntese quase perfeita do que no fundo atormenta a sua alma. Nela, os contornos da angústia existencial serão revelados através de palavras, subliminares, mas directas, que demonstram alguma impotência face aos factos concretos que ajudou a criar, fruto da má-consciência, do peso da culpa e sobretudo do recalcamento que continuará a sustentar nos seus ombros curvados e que a impediram e impedem de ser a mãe que podia ser num contexto ideal, isto se o mundo fosse um lugar justo e impoluto como a visão redutora do Paraíso. Felizmente, aqui não imperam os happy-ends falaciosos e forçados de certos modelos de produção. Em “Filhos”, a dura e crua realidade sobrepõe-se ao lado mentiroso dos finais hollywoodianos de outras eras. E aí reside a força deste filme que merece sem dúvida um visionamento desencantado e atento.

Título original: Vogter Título internacional: Sons Realização: Gustav Möller Elenco:
Sidse Babett Knudsen, Sebastian Bull, Dar Salim Duração: 100 min. Dinamarca/França/Suécia, 2024

fotos: © Nordisk Film Production

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