«A Fera na Selva», filme do austríaco Patric Chiha, estreou mundialmente, em 2023, no Festival de Cinema de Berlim, na secção Panorama – um certame habituado a destacar obras mais conotadas com a esquerda. O filme baseia-se num conto de Henry James adaptado algumas vezes à sétima arte, a última das quais por Bertrand Bonello, em 2023, em «A Besta», com a atriz Léa Seydoux.

«A Fera na Selva» é um conto moral, focado na história de John (Tom Mercier) que perde uma vida inteira à espera do “acontecimento” que vai mudar tudo. Enquanto isso não acontece, a vida passa-lhe literalmente à frente dos seus olhos. A sua companheira nesta jornada é May (Anaïs Demoustier) uma jovem que conheceu numa festa de Verão enquanto adolescente. Eles reencontram-se num clube noturno em Paris chamado “Febre da Selva”. O clube vai ser praticamente o palco exclusivo dos acontecimentos deste filme, a ação estende-se por 25 anos, atravessando as tendências da música de dança no final dos anos 1970, uma viagem sonora e visual dos últimos dias do disco até ao techno industrial no início dos anos 2000. Em fundo há o burburinho dos momentos incontornáveis do mundo no exterior do clube francês (uma espécie de relógio no tempo): a eleição de Mitterrand em 1981, o flagelo da SIDA e o 11 de Setembro.

A ação decorre aos sábados há noite, quando John se encontra com May e pouco ou nada sabemos das suas vidas fora da redoma do clube. Apesar de partilharem uma atração mútua desde infância, John não chega a May e May não consegue escapar de John. Ele é um exercício de niilismo, não dança, não beija, é um corpo amorfo que só observa a pista. Anos mais tarde, May junta-se a ele no balcão do clube em modo de observação da pista de dança.

A interpretação de Anaïs Demoustier no papel de May é palpável, embarca na miragem de John e lentamente atira-se a esse abismo sem fim. O ator, Tom Mercier, dá corpo a um indivíduo impávido e inexpressivo, “um burro a olhar para o palácio”, e fá-lo com distinção.

«A Fera na Selva» é feito à medida da interação no seio de uma sala de cinema que transforma a atmosfera numa espécie de transe que nos aproxima da frustração desta história. A moral é simples: não esperes pelo amanhã, aproveita o que podes fazer hoje. É uma narrativa que à superfície poderá não dizer muito, mas a provocação de Patric Chiha não passa ao lado de ninguém, especialmente numa era onde se cobiça/sonha com vidas artificiais em vez de vivermos o aqui e agora.

Título original: Realização: Patric Chiha Elenco: Anaïs Demoustier, Tom Mercier, Béatrice Dalle Duração: 103 min. França/Bélgica/Áustria, 2023

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