Presente na seleção oficial do Festival de Cannes de 2025 com «O Agente Secreto», de Kleber Mendonça Filho, o cinema pernambucano, uma imparável fábrica de invenção, abriu o ano com um Urso de Prata – o Grande Prêmio do Júri da Berlinale – para um dos seus inquietos criadores, Gabriel Mascaro, laureado por «O Último Azul». Ano a ano, as estéticas deles galgam novas fronteiras no audiovisual. Aquela fatia do Nordeste provou ser capaz de brilhar até na seara do thriller, com o sucesso de «Propriedade». Recebido com mimos na sua passagem pelo Festival de Berlim de 2023, a longa-metragem de Daniel Bandeira revela um novo prisma na sua chegada às telas portuguesas, ao mesmo tempo em que, no Brasil (o seu berço), instala-se na grelha Netflix. A sua imersão no código do coronelismo (jargão que define a política dos donos de terra) é ampliado agora, na sua passagem por uma nova via de acesso ao público europeu, num istmo luso, na revelação de novas camadas de sentido em relação ao vitimismo e à opressão. A sua trama diáloga com o conceito filosófico do Paralelismo do Cordeiro, de Friedrich Nietzsche (1844-1900).

Segundo o filósofo: “Quem luta contra monstros deve garantir que, no processo, não se torne um monstro. Se você olhar o suficiente para um abismo, o abismo voltará a olhar para você”. Pois o precipício que Daniel Bandeira abre no seu belo filme é o do desamparo, da submissão e do revanchismo. A sua edição virtuosa cerze esses três pontos, à luz de uma filmografia que nos deu «Bacurau» (2019), «Azougue Nazaré» (2018), «Aquarius» (2016), «Baixio das Bestas» (2006).  É o filme que desmonta a estrutura sociológica funcionalista (e paternalista) do cinema brasileiro, oferecendo a ele, como alternativa, o léxico das narrativas de género, mas de olho no legado marxista.

Certezas de classes – a dos pobres e a dos aristocratas – são um convite à ruína na trama, que contextualiza o linchamento e revanchismo sob múltiplas perspectivas críticas, tanto aquelas que desnudam a microfísica da dominação latifundiária quanto aquelas que problematizam (bem) as consequências do levante popular.

Laureado com o troféu Redentor de Melhor Montagem (dada a Matheus Farias, o editor de «Retratos Fantasmas») no Festival do Rio 2022, «Propriedade» se reporta a cartilhas da tensão com louvor. Ganhou o prémio de Melhor Realização no Fest Aruanda, na Paraíba, em 2022, por todo o seu virtuosismo nos enquadramentos. Saiu de lá ainda com os troféus de Melhor Figurino, Direção de Arte, Som e Fotografia. Essas láureas vieram quando o cineasta expurgava um fantasma da sua vida profissional.

Em junho de 2022, Daniel Bandeira conseguiu “tirar da gaveta” a sua primeira longa, que ficou anos a fio (15, para sermos exatos) na fila de espera para estrear: «Amigos de Risco». Essa produção foi exibida pela primeira vez no Festival de Brasília, em 2007 e desapareceu, pois, sofreu um extravio das suas cópias em película e outros percalços. É a história de dois colegas que carregam um camarada desmaiado Recife adentro.  Já era uma percepção da solidariedade popular, que é o tema de «Propriedade».

Neste novo (e mais maduro) trabalho, Daniel Bandeira trabalha a ideia do que é “arriscado”, do “risco” (mencionado no título do filme anterior) em outro plano. Não opera mais no plano urbano de uma metrópole, em deslocamento, mas, sim, na condição de inércia forçada de uma artista de classe social abastada acossada por uma multidão de pessoas que tiveram os seus empregos reduzidos a pó. Esse povo sobre o qual fala está em um contingente rural.

Quem nos leva ao território sem lei (e cheio de abusos) mapeado por Bandeira é Tereza, uma estilista vivida pela atriz Malu Galli, que amplia potência trágica. Ela é uma designer de moda. A sua vida silenciou-se depois de uma situação em que ela foi refém, durante um assalto, resvalando num trauma. Na luta contra os fantasmas do passado, ela se vê defronte a um novo perigo quando os trabalhadores da fazenda do marido, um sujeito sexista e mesquinho, fazem um motim em prol dos seus direitos trabalhistas, mantendo-a recolhida em um carro blindado. É uma mistura de John Carpenter (em «Assalto à 13.ª Esquadra», de 1974) com o Roman Polanski de «Cul-De-Sac – O Beco» (Urso de Ouro de 1966).

Fotografado numa luz dionisíaca por Pedro Sotero (de «O Som ao Redor»), o argumento faz jus à natureza autoral do seu realizador ao usar o tempo narrativo numa compressão absoluta, até um transbordamento no qual explode em horrores sociológicos. Na autópsia em corpo vivo daquele quinhão do Nordeste, Daniel Bandeira dá uma aula de reforma agrária regada a adrenalina.

Título original Propriedade Título internacional: Property Realização: Daniel Bandeira Elenco: Carlos Amorim, Malu Galli, Anderson Cleber Duração: 101 min. Brasil, 2022

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