Embalado nos acordes da banda Son Lux, «Thunderbolts*» é um gesto desesperado de “salve-se quem puder” da indústria cinematográfica para tentar salvar o filão “super-herói”, ameaçado de extinção, numa reprodução de fórmulas testadas por James Gunn – em Guardiões da Galáxia – e por David Ayer – em «Esquadrão Suicida» – para preservar o filão por caminhos onde os personagens mais nobres das BDs não entram. O par de longas-metragens supracitadas tinham ação sem filtro, excedia a contagem de corpos derrubados e trabalhava com uma fauna de tipos que só nerds e geeks conheciam. Assim era mais fácil arriscar. Aliás, a Marvel foi fazer cinema assim mesmo.
Estávamos no final dos anos 1990 quando «The Truman Show – A Vida em Directo» (1998), de Peter Weir – usado como fonte de inspiração para o poster oficial do 75º Festival de Cannes, em 2022 – veio anunciar o nascimento de uma nova dramaturgia para o audiovisual, os reality shows, que alimentaram, no seu boom, uma demanda pelo consumo do Real nas mais variadas telas. O documentário brotou ali, a partir de 1999, como uma força narrativa que se exponenciava pelas diferentes janelas mediáticas, chegando ao ponto de se misturar com a ficção, como se viu, naquele mesmo ano, com o ganhador da Palma de Ouro: «Rosetta», dos irmãos Dardenne, drama de realismo esturricado. Mas, naquele torvelinho de novas camadas de percepção a serem descascadas, quando ninguém falava em super-heróis, um ator em apogeu na seara B do grande cinema (graças a «Passageiro 57» e «Homem Demolidor» [«Demolition Man»]), que havia sido laureado com o troféu de Melhor Interpretação do Festival de Veneza (com «Cúmplice à Noite» [«One Night Stand»], em 1997), resolveu massajar o peito em estado de choque do filão super-herói, que estava em coma desde o fiasco de «Batman e Robin», com Schwarzenegger de Sr. Frio [Mr. Freeze]. Era Wesley Snipes. O seu desejo de filmar o Pantera Negra não foi concretizado. A Marvel Comics, editora que faturava a rodos na década de 1990, sempre teve má sorte no circuito exibidor, tendo alcançado o sucesso só na TV, com a série Hulk, com Bill Bixby e a animação dos X-Men. Logo, negou-lhe o pedido para visitar Wakada. Mas Wesley contentou-se com o personagem que a cúpula marvete lhe ofereceu como consolação: Blade, o Caçador de Vampiros. Na sua militância antirracista, Snipes queria um personagem negro que pudesse rechear com o seu carisma e suas manhas de capoeira. Conseguiu. E mais do que isso: ao levar aquele matador de sanguessugas ao público, ele provou que os filmes sobre vigilantes das BDs eram a maior diversão para aqueles tempos de reconfiguração das narrativas realistas, uma vez que mesclavam a fantasia com problemas do dia a dia. Problemas que iam desde arranjar dinheiro para ganhar a renda até a dor da perda, passando pela exclusão social e racial. Era o mesmo conceito que fez a Marvel disparar nos quadrinhos, nos anos 1960, ao lançar o Quarteto Fantástico, cujo mote era uma família disfuncional.

Naquele momento de reconfiguração, galvanizado pelo trauma do 11 de Setembro, a Fox foi filmar os X-Men e a Sony decidiu escalar paredes com o Homem-Aranha.
Franquias diversas nasceram dali e levaram a Disney a desembolsar uma fortuna para assegurar para si toda uma mitologia de heróis e vilões na negociação que redefiniu o lugar dos quadrinhos no grande ecrã. Kevin Feige foi o produtor por detrás das operações de Mickey Mouse no reino dos super-heróis, numa dinâmica que faturou biliões e produziu joias. «Vingadores: Endgame» (2019) é a melhor de todas elas.
Tudo andava a mil, a todo o vapor, para a equação financeira de Kevin Feige, até a reprodutibilidade técnica cansar. Como profetizava o filósofo Jean Baudrillard: “nada desaparece pela escassez, e, sim, pela abundância, até Deus, ao virar vedeta de programas de TV religiosa”. O filão da banda desenhada, que era infalível, acabou por se desgastar, por excesso, em 2022, com o repugnante «Thor: Amor e Trovão». O empenho de levar uma marca como Thunderbolts para o écran é um meio de regar um pasto que hoje está esturricado devido a uma exploração excessiva.
Jake Scheirer, realizador de «Robot & Frank» (2012), foi recrutado para preservar o porvir da Marvel apoiado no legado dos comics do escritor Kurt Busiek e do ilustrador Mark Bagley, os pais dos Thunderbolts originais. O grupo apareceu em “The Incredible Hulk” nº449, em janeiro de 1997, de Peter David e Mike Deodato. Três meses depois, ganhou um título próprio e fez algum êxito comercial.
No apogeu da sua arte de inspiração helênica, Bagley deu movimento às ideias de Busiek, que deixaram o público leitor de queixo caído ao inverter a polaridade do Bem: o seu esquadrão não reunia almas altruístas e, sim, bandidos disfarçados de salvadores da pátria. O líder dos Bolts, o espadachim Cidadão V, era uma fachada. Por trás da sua máscara metálica havia o Barão Helmut Zemo, um espólio vivo da senda nazi. Daniel Brühl (de «Adeus, Lenine!») interpretou esse vilão no grande ecrã e na Disney+, mas foi ignorado por Jake Scheirer.

A ambição de Zemo era ganhar a credibilidade da população, pelo meio da ausência dos Vingadores, que sumiram por intermédio da crise nas terras infinitas [o multiverso]. Uma vez adorado pelos media, ele poderia expandir os seus domínios sobre o mundo livre. A sua principal aliada era a Meteorita, identidade adotada pela super vilã Rocha Lunar.
Nada disso foi aproveitado pelo realizador Jake Scheirer, que optou por explorar refugos de filmes e de séries anteriores. Sebastian Stan é o seu Sol, de volta ao posto de Soldado de Inverno [Winter Soldier]. A sequência em que ele surge de moto, aos tiros, a fim de combater inimigos é um tributo a «Exterminador Implacável 2 – O Dia do Julgamento» (1991).
No início da trama, ele é um político que almeja desmontar as maquinações justiceiras de uma condessa, a obre Valentina Allegra de Fontaine, personagem em que a sempre genial Julia Louis-Dreyfus interpreta na fronteira do esplendor. É ela que arregimenta um grupo de anti-heróis de segunda, entre os quais está a Viúva Negra (Florence Pugh). A sua meta é eliminar os resquícios do projeto Sentry, que almejava gerar vigilantes superpoderosos. Num erro, esse experimento assegura forças incontroláveis a um bipolar, Robert Reynolds (o insosso Lewis Pullman). Ao assumir o manto do Sentinela, ele abre precedentes para o Mal, pois no seu inconsciente reside algo de vilão. A fim de deter esse lado ruim, ergue-se um grupo uniformizado, com a Viúva à frente e o Soldado de Inverno nos flancos.
A montagem é irregular. O argumento não sabe aproveitar o tom épico da herança dos criadores Mark Bagley e Kurt Busiek. Cabe à direção de fotografia dionisíaca estruturada por Andrew Droz Palermo salvar a elegância deste espetáculo imperfeito, mas imperdível.
Título original: Thunderbolts* Realização: Jake Schreier Elenco: Florence Pugh, Sebastian Stan, Julia Louis-Dreyfus, Lewis Pullman, David Harbour, Wyatt Russell, Olga Kurylenko, Wendell Pierce Duração: 126 min. EUA, 2025