“Tudo o que fiz foi pela Irlanda”, mais palavra menos palavra, será este o lema e será essa a sensação mais forte que fica de um filme como «Crock of Gold: A Few Rounds with Shane MacGowan» («Pote de Ouro: Nos Copos com Shane MacGowan»), 2020, assinado por Julien Temple e produzido, entre outros, pelo músico e actor Johnny Depp, amigo, de muitos anos e cúmplice de muitas aventuras da figura visada neste vibrante documentário, o emblemático Shane Patrick Lysaght MacGowan (25 Dezembro de 1957 – 30 de Novembro de 2023), vocalista dos “Nipple Erectors”, a que se seguiu a liderança dos fabulosos “The Pogues” e por fim da banda “Shane MacGowan and The Popes”. Foi sem dúvida um dos maiores e mais controversos nomes do chamado punk-folk, autor dessa obra-prima da fusão entre estilos e culturas aparentemente distintas, anglo-saxónica e celta, sintetizadas no single de maior sucesso dos “The Pogues” intitulado “Fairy Tale of New York”, a mais improvável mas igualmente deslumbrante e sedutora canção de Natal. Recordam-se do refrão? “The boys of the NYPD choir/ Were singing Galway Bay/ And the bells were ringing out/ For Christmas day”.
Para os devidos efeitos, Julien Temple foi chamado, e bem, para coordenar esta missão que não se afigurava fácil. Tudo começou na sequência de um espectáculo realizado no National Concert Hall de Dublin, concerto de homenagem a Shane MacGowan, que apareceu em palco já visivelmente fragilizado por questões de saúde que o iriam atormentar ao longo de anos, consequência explosiva do desregrado consumo de álcool e drogas. Tratava-se igualmente de uma ocasião para celebrar o seu sexagésimo aniversário. Nessa noite memorável participaram figuras maiores do panorama musical, como Bono, Nick Cave e Sinéad O’Connor. Devido ao enorme impacto do que ali se passou, começou a circular entre os que estiveram presentes a ideia de avançar para um documentário sobre a vida e obra do cantor, compositor e poeta, nomeadamente Johnny Depp, Gerry O’Boyle, Gary Sheehan, e a sua mulher, Victoria Mary Clarke. Pouco depois a equipa de produção e realização estava constituída e o processo de rodagem foi iniciado, assim como a recolha de materiais de arquivo (são muitos e diversos os que podemos ver numa contextualização do que se vai ouvindo e dizendo ao longo do filme). Todavia, o mais complicado era conseguir que o protagonista desse conta de si e falasse abertamente sobre o que lhe ia na alma. Ele que nos últimos anos de vida mais parecia um simpático e de certo modo pacificado desalmado, no sentido de essa mesma alma pairar num limbo que no entanto parecia interiormente controlar. Parecia quase impossível levá-lo a referir o que desde cedo o motivou a seguir uma carreira que contrariava as melhores perspectivas e expectativas dos pais, sobretudo as da mãe, que ele vai acusar de ser uma “arrivista social”. De facto, foi ela provavelmente a figura que maior pressão exerceu para que uma família perfeitamente integrada nos usos e costumes da Irlanda rumasse para Inglaterra, mesmo considerando a justificação de que ali iriam encontrar melhores condições de vida e melhores recompensas salariais. Será então com apenas seis anos de idade que na “selva” urbana de Londres e nas rígidas instituições conservadoras onde o puseram a estudar que o jovem Shane MacGowan se vai sentir deslocado do que fora até ali a sua fascinante experiência, algo panteísta, junto do povo e da herança gaélica irlandesa. Foi igualmente nessa época que sentiu falta dos ecos que lhe haviam chegado por amigos e familiares dos diversos ciclos de convulsões políticas e sociais que varreram a Irlanda e que alcançaram a sua máxima expressão na luta revolucionária armada contra o imperialismo e colonialismo britânicos. Neste contexto, fica claro que o músico dava primazia aos feitos do IRA (Irish Republican Army), chegando mesmo a dizer que sentia vergonha por não arranjar a coragem necessária para se juntar ao exército independentista (“I felt ashamed I didn’t have the guts to join [them]”). Decerto esse adiado ingresso nunca concretizado levou-o a sublinhar na sua obra musical a influência da identidade irlandesa e das suas idiossincrasias mais profundas, nomeadamente no campo da crítica social e da afirmação política patente em algumas das suas letras. Fica muito claro que o homem e o músico partilhavam um conhecimento sincero das vicissitudes históricas pelo qual passou o país que adoptou como sua principal referência. Na verdade nasceu em Pembury, Kent (Inglaterra), mas foi durante a infância em Tipperary (Irlanda) que a sua formação se consolidou, fazendo jus a raízes familiares irlandesas que a condição de expatriado não iria apagar do dia para a noite. Por isso, ao longo do filme a sua memória não esquece os relatos que ouviu menino e moço, por exemplo, sobre os anos da fome e da miséria durante os quais morreram mais de um milhão de irlandeses, situação que obrigou outro milhão a emigrar, sobretudo para os EUA. Fome cujos vestígios materiais e macabros encontrara quando criança ao percorrer as dunas onde uma larga percentagem dos mortos fora enterrada, por não haver condições nos cemitérios para os sepultar condignamente. Toda a primeira metade do documentário desenvolve com acutilante e incisiva clareza os pontos fulcrais do seu percurso existencial, e só na segunda metade entramos na deriva punk que antecedeu a mais forte e estruturada investida nas posteriores sonoridades híbridas dos “The Pogues”, o vértice e vórtice que lhe apontou o caminho da glória e onde ele deu asas a uma energia caleidoscópica motivada por imensas bebedeiras em plena actuação e pelo consumo de substâncias pouco recomendáveis para a saúde física e mental. Mas como ele diz a certa altura: “We’re better when we’re sober, but it’s not as much fun” (Tocamos melhor quando estamos sóbrios, mas não dá o mesmo gozo).

Muito mais podia acrescentar para recomendar vivamente este «Pote de Ouro: Nos Copos com Shane MacGowan», mas deixo apenas mais uma nota, desta vez dando voz ao realizador que assim se referiu ao protagonista: “Irascível, intratável, enfurecedor, fascinante, chocante, exasperante, belicoso, comatoso, rabugento, cadavérico, impossível, imparável – filmar Shane é como voar através de um arco-íris radioactivo, mas no final há um “pote de ouro” à espera de ser descoberto por aqueles que se esforçam o suficiente. Daí o título do filme, que é inspirado na antiga lenda irlandesa com o mesmo nome. Fazer um filme sobre Shane MacGowan não é fácil. O mais próximo em que consigo pensar é um daqueles filmes de David Attenborough. Preparam-se as armadilhas com a câmara, espera-se e espera-se, na esperança de que um dia o leopardo das neves as accione. Quando realmente se consegue capturar a força única da personalidade de Shane, mesmo que por um momento, percebemos então que valeu a pena”. Pela minha parte, assino por baixo.
Resta-me saudar mais esta iniciativa da produtora e distribuidora “Zero em Comportamento”, que nos deu a conhecer há poucas semanas o excelente «Becoming Led Zeppelin» («Led Zeppelin – O Nascimento da Lenda»), 2025, de Bernard MacMahon. Trata-se de uma vertente do documentário de criação e de autor que merece uma continuidade e uma divulgação generalizada, a que o streaming pode acrescentar uma mais-valia para quem não possa frequentar os grandes cinemas de estreia, quase sempre situados no litoral e nas grandes cidades. Que venham mais, e se quiserem sugestões, posso dar algumas com base no que já vi e gostava de partilhar com aqueles que amam a música com M grande e não se importam de saber mais sobre personalidades maiores do que a vida que, como diria o poeta português, da lei da morte se libertaram.
Título original: Crock of Gold: A Few Rounds with Shane MacGowan Realização: Julien Temple Documentário Duração: 124 min. Reino Unido/Irlanda, EUA, 2020