[Estreia Prime Video]
«Pequenas Cartas Malvadas» é diabolicamente divertido. Aqui a malvadez dá o mote para a comédia desgarrada, fruto de uma grande pancada e (incrivelmente) baseada em factos verídicos mas que tinha ficado perdida no tempo. O filme tem um excelente ensemble de actores britânicos e distingue-se com três interpretações de luxo que são dignas de chamarmos um exorcista, é que Jessie Buckley, Olivia Colman e Timothy Spall estão claramente possuídos pelos seus personagens… E se sabíamos que Colman e Spall só sabem ser brilhantes, Jessie Buckley («Men», de Alex Garland) é um caso sério como protagonista.
Uma rixa de duas vizinhas toma proporções épicas em «Pequenas Cartas Malvadas». Passado em Littlehampton, em 1920, um incidente que abala uma comunidade à beira-mar e chega às primeiras páginas dos jornais de Inglaterra. A recepção de cartas anónimas com uma linguagem abaixo da cintura coloca em alvoroço a vizinhança e principalmente a família de Edith (Olivia Colman). Esta é uma beata de cabeça aos pés que acha que o benefício de sofrer é estar mais perto do céu… É uma mulher de meia idade que toma conta dos pais mas é tratada como uma adolescente pelo pai (Timothy Spall). Este lar profundamente religioso vive a paredes meias com Rose (Jessie Buckley) uma desbocada irlandesa que vive com a sua pequena filha e o namorado. Rose gosta de se divertir, beber e se for preciso resolve os problemas à cabeçada.
As cartas são tão insultuosas quanto hilariantes na sua verborreia, mas tornam-se assunto de polícia e Rose vai parar à prisão. Entra em acção o terceiro vértice desta narrativa: Gladys Moss (Anjana Vasan), uma mulher polícia que é considerada uma aberração na sua esquadra por ser… mulher. Ela é judiciosa e perspicaz, segue as pisadas do pai que foi polícia durante 22 anos, mas a sua acção está reduzida a tarefas insignificantes. A sensibilidade feminina e o seu instinto podem descortinar o mistério das cartas juntamente com um grupo de mulheres que voltou a ser insignificante após o regresso dos homens da Guerra.
«Pequenas Cartas Malvadas» induz mais uma camada de entretenimento com a investigação para descobrir a origem das cartas que vão disparando em todos os sentidos. Ao mesmo tempo, temos a observação dos comportamentos machistas e trogloditas face à condição da mulher no início dos anos 1920 em Inglaterra. Situado entre o absurdo e o sinistro, o filme conta igualmente uma história de emancipação feminina.
O mérito da obra, além das referidas interpretações, vai também para o argumento do britânico Jonny Sweet na sua auspiciosa estreia como argumentista no cinema. A realização pertenceu à prolifica encenadora teatral Thea Sharrock, que realizou recentemente «O Jogo Bonito», da Netflix. Este é o melhor dos seus quatro filmes já realizados, combinando diferentes tons, bons interpretes e uma história mais estranha do que a própria ficção.
Quando ansiamos por histórias originais, divertidas e bem interpretas, «Pequenas Cartas Malvadas» é um inesperado antídoto para abanar o sistema e divertir-nos desalmadamente. Uma nota final para relembrar que este filme foi também produzido pela Blueprint Pictures, etiqueta responsável por sucessos junto do público como «O Exótico Hotel Marigold» e «Os Espíritos de Inisherin».
Título original: Wicked Little Letters Realização: Thea Sharrock Elenco: Jessie Buckley, Olivia Colman, Timothy Spall, Anjana Vasan, Alisha Weir Duração: 100 min. Reino Unido/França/EUA, 2023