Se não está fácil para ninguém levar a vida neste mundo de polarizações, de guerras, de Trump, imaginem a dificuldade dos super-heróis, neste momento de conflitos, inflações, IA, linchamento virtual e a cultura de cancelamento que parece rotular de démodé o altruísmo de vigilantes uniformizados. Não é à toa que o fenomenal «Superman», de James Gunn, com o seu sucesso de bilheteira dos mais imparáveis, parece uma BD da década de 1980, daquelas que o artista gráfico John Byrne desenhava e escrevia para a DC Comics. Byrne parece ser a referência conceitual também do estonteante «The Fantastic Four: First Steps», a quarta investida do cinema live-action nos personagens criados por Stan Lee (1922-2018) e Jack Kirby (1917-1994) em 1961, e que serviram de pedra fundamental para a Marvel Comics.

Egresso de best-sellers dos X-Men, que fez em parceria com Chris Claremont, Byrne comandou os comics do Quarteto Fantástico, de julho de 1981 a outubro de 1986, entre os números 232 e 295 das edições mensais das peripécias terrenas e intergalácticas de Reed Richards e o seu clã. A sua companheira, Sue Storm (a Mulher Invisível), e o seu cunhado, Johnny, o Tocha Humana, peitavam o Mal a seu lado, com o auxílio de um amigão, Ben Grimm, o Coisa [The Thing], feito de pedra. A exposição às ondas estrelares chamada de raios cósmicos, durante uma expedição cosmonauta em prol da Terra, fez deles seres superpoderosos. A tarefa de Byrne era explorar os seus medos e humaniza-los para além da matriz de Stan e Kirby. Vilões como o Toupeira, vivido agora no grande ecrã por Paul Walter Hauser, também ganhou novas e empáticas angústias que fariam Freud acender um charuto e baforar talking cure.

A longa-metragem que chega neste fim de semana aos cinemas, sob o crivo da Disney, explora esses subterrâneos sentimentais, numa delicada abordagem dramatúrgica de Matt Shakman, cineasta que revisita uma marca icónica da banda desenhada com ares de seriados dos anos 1950 e 60. É um «I Love Lucy» misturado com ‘Father Knows Best», num eixo sci-fi à moda «The Jetsons». O realizador, advindo de séries como «House», «WandaVision» e «Game of Thrones», fez justiça à família que serviu como pilar editorial para a Marvel e inaugurou um estilo de comics sintonizado com os conflitos culturais de seu tempo – sobretudo a intolerância racial. A direção de arte em que ele aposta é de um colorido temperado, de fina precisão, com especial esmero no emprego da cor azul, empregada nos uniformes dos heróis. A trama se alinha com a tradição cinéfila dos “filmes catástrofe”, pois não existe, como se vê de praxe, um combate ao Mal, mas, sim, à extinção da geografia terrena. 

O que se vê de vintage na forma se vê também no desenho dos personagens, feitos por um elenco em estado de graça – e em covalência plena de talentos. Pedro Pascal é um Reed Richards (ou Sr. Fantástico) com ar de Rock Hudson. Vanessa Kirby constrói Sue Storm, a Mulher Invisível, num diapasão melodramático elegante, a traduzir pleitos feministas de ontem e de hoje. Joseph Quinn engole cada quadro em que aparece sob as chamas do Tocha Humana – o melhor que o cinema já viu. Por fim, com seu ar de fera ferida, Ebon Moss-Bachrach traduz a inquietude de Ben Grimm, o Coisa, nas raias da dor do não pertencimento. O seu jargão de guerra, contudo, está lá: “It’s clobberin’ time!”. Em Portugal é “Está na hora de andar à luta!” e, em “brasileiro”, é “Tá na hora do pau!”. 

 Ao mesmo tempo em que conversa com a pintura de Norman Rockwell (1894-1978), a produção se reporta ao colorido “quadrinizado” da Marvel na sua direção de arte. O álbum “Parábola”, de Stan Lee e Moebius (1938-2012), chega a ser citado explicitamente, ao revelar a imagem de Galactus, o Devorador de Mundos. Não se trata de um vilão. É uma entidade que acelera a entropia de planetas condenados ao desaparecimento pelas regras das galáxias. A sua arauta, a Shalla-Bal (Julia Garner), é quem vai ajudá-lo na sua senda predatória contra a Terra, numa fome que o Quarteto tentará deter.

zeitgeist de anteontem que Shakman abraça é uma forma da Marvel reaver o prestígio que se perdeu com fracassos sucessivos, desde «Thor: Amor e Trovão», em 2022. Fiascos constantes fizeram um império tropeçar. Esse império marvete sustentou multiplexes por muito tempo.   

Em 1998, um coadjuvante do Homem-Aranha, o vampiro Blade, inaugurou a rentável linhagem de narrativas audiovisuais inspiradas em super-heróis da Marvel Comics. Foi Wesley Snipes quem começou tudo. Astro de thrillers como «Passageiro 57» (1992), ele havia conquistado há pouco, em 1997, o troféu de Melhor Ator no Festival de Veneza pelo drama « Cúmplice à Noite», quando foi escalado para dar vida ao sanguessuga do Bem criado por Marv Wolfman e Gene Colan, em 1973. A sua escolha surpreendeu os exibidores. Naquela época, nada da Marvel dava certo no grande ecrã, só na TV, vide o seriado do Hulk com Lou Ferrigno pintado de verde ou desenhos animados com o Surfista Prateado. O êxito de Snipes nas bilheterias acionou o interesse da indústria audiovisual pelos tesouros dramatúrgicos da Marvel, autorizando Sam Raimi a filmar «Spider-Man», com Tobey Maguire, e Bryan Singer a rodar «X-Men – O Filme». Ambos se tornaram fenómenos e ganharam (muitas) sequelas.

A sucessão de acertos de facturação milionária motivou o lançamento do Marvel Studios, em 2008, com «Homem de Ferro», que inaugurou a onda das cenas pós-crédito. Naquele mesmo ano, o diretor inglês Christopher Nolan bateu a barreira do bilião com «Batman – O Cavaleiro das Trevas», da DC Comics, rodado sob o selo da Warner Bros. A chegada de «Os Vingadores», em 2012, consolidou de vez a égide dos justiceiros da arte sequencial nos écrans. Para coroar essa excelência, «Logan» (2017) fechou a Berlinale e disputou o Óscar de Argumento Adaptado e «Joker» (2019) ganhou o Leão de Ouro de Veneza.

Em 2022, o frio acolhimento ao já citado (e pavoroso) «Thor: Amor e Trovão», de Taika Waititi, deu o primeiro indício de um cansaço da parte de espectadoras/es diante do excesso de ofertas ligadas à ficção dos comics dos EUA. Desastres de facturação com «Quantumania», «Flash», «Marvels» e «Aquaman 2: O Reino Perdido» [«Aquaman and the Lost Kingdom»], todos em 2023, reforçaram a catástrofe anunciada, que se agravou com a fria recepção dada a «Joker: Loucura a Dois» [no Brasil: «Coringa: Delírio a Dois»], em outubro de 2024. «Kraven, o Caçador» apanhou o fio à meada nesse descalabro, apesar de ser eletrizante, calçado na direção fina de J. C. Chandor, em especial no embate do protagonista contra o Rino, vivido por Alessandro Nivola. 

A vitoriosa exceção do último Deadpool, com a sua receita bilionária, vem do carisma de seus astros, Ryan Reynolds e Hugh Jackman. Não é por acaso, que a longa concorre ao Globo de Ouro na categoria do Melhor Blockbuster. Aliás, a Golden Globe Foundation indicou a série do Pinguim (na MAX) a três prémios, incluindo os de Atriz e Ator, coroando os desempenhos (magistrais) de Cristin Milioti e Colin Farrell. Em França, o alvoroço que destrona os quadrinhos no cinema também não afogou a dupla Astérix e Obélix, que, há um ano, levou 4,5 milhões de pagantes às telas para rir com “O Império do Meio”, hoje na Netflix. Em Itália, a série de filmes baseados no ladrão Diabolik encheram salas e ganharam projeção no Festival de Roterdão.  

Agora, com a Família Richards, o Homem de Aço de David Corenswet e a esperada animação «Homem-Aranha: Além do Aranhaverso» (ainda sem data) a expressão artística nerd há de voar alto de novo.

Título original: The Fantastic Four: First Steps Realização: Matt Shakman Elenco: Pedro Pascal, Vanessa Kirby, Ebon Moss-Bachrach, Joseph Quinn, Ralph Ineson, Julia Garner, Natasha Lyonne Duração: 115 min. EUA, 2025

[Crítica originalmente publicada a 23 de Julho 2025]

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