Ilíada de um tempo em crise com o conceito clássico de heroísmo, na saga X-Men e os seus derivados – Wolverine é o mais famoso deles, protagonizado por um Ulisses trágico – são rebentos do que se poderia entender como o legado número um da cultura digital para a dramaturgia audiovisual: o conceito de meta-cinema. Os Filhos do Átomo, os discípulos de Charles Xavier, criados nos comics por Stan Lee em 1963, tornaram-se no cinema como Filhos da Geração DVD. A partir do final dos anos 1990, quando a tecnologia informática permitiu o advento das bolachinhas chamadas de Digital Versatile Disc, toda a memória fílmica produzida no mundo, até aquele momento, encontrou um escoamento (e um veio de preservação) biblioteconómico, que nos permitiu não apenas acesso a cópias, por exemplo, de uma comédia de Harold Lloyd (1893-1971) feita em 1919, mas também a toda uma fortuna crítica (mais contemporânea) sobre ela: apelidado de extras. Diferentes do que se viveu na era VHS, todo DVD era um casamento de entretenimento com aula de História, o que alfabetizou uma nova linhagem de cinéfilos e reeducou o olhar dos mais velhos, criando, em ambos, uma perceção de que a realidade – do Presente e do Passado, sobretudo – é mediatizada, ou seja, existe o passado real, concreto, e existe o passado que o cinema nos ensinou. A nossa ideia da Chicago dos gangsters não é a Chicago dos documentos, calcada em factos: a nossa Chicago é a de Brian De Palma em «Os Intocáveis». Ou seja… a verdade dá lugar a simulacros. E simulacros produzem simulações da vida, ou seja, uma meta-vida, onde a imagem não é só um corredor que nos leva a experiências sensíveis: imagem é a experiência em si. E o novo «Logan» é uma delas. Das melhores.

O que a práxis do simulacro produziu foi um meta-cinema. Veja-se, por exemplo, o caso de alguns dos seus maiores artesões. Pedro Almodóvar («Fala com Ela») e Wong Kar-Wai («Disponível Para Amar») criaram com base no seu mergulho em mestres do cinema e do folhetim (Vincente Minelli e Douglas Sirk sobretudo) uma ideia de meta-melodrama, ou seja, uma reflexão sobre os sofrimentos do querer calcados não em registos do Real, mas em noções de amar, sofrer, perder e reconquistar o que o Cinema lhes ensinou. No caso de Quentin Jerome Tarantino («Sacanas sem Lei») passou os últimos quatro anos dedicado à lapidação do que podemos chamar de meta-melodrama: os geniais «Django Libertado» (2012) e «Os Oito Odiados» (2015) não são apreensões reais de questões do Oeste “de verdade”, mas sim do Oeste de papelão que Hollywood e os spaghetti italianos nos deixaram. São “pequenas mentiras” erguidas sobre “pequenas mentiras”, ficção da ficção.

Logan
Hugh Jackman

Embora não tenha – ainda – o peso destes cineastas, mas já tenha um lastro autoral com base na contínua discussão da farsa como prática de sobrevivência, o diretor James Mangold fez da franquia baseada nas aventuras do mutante de guerras metálicas – «Wolverine» (2013) e, agora, o brilhante «Logan» – a instância do meta: não o meta-quadrinho, mas o meta-filme. Por um bom tempo dos quase 140 minutos de «Logan», esquecemos estar diante de um filão consagrado: o “filme de super-herói”. Estamos, sim, num thriller sobre formação familiar, semelhante com os que Sam Peckinpah fez entre os anos 1960 e 70, sobretudo «Tiro de Escape» (1972). A secura narrativa é a mesma, uma vez que mantém os pés fincados no realismo, com um ritmo de ação febril, sem jamais abrir a mão da sua amargura estrutural.

Tem um tempero de «Stranger Things» na fuga de Logan para proteger a jovem Laura Kinney (Dafne Keen) da tropa dos Carniceiros chefiados por Donald Pierce (Boyd Holbrook, de «Narcos»). Neste filmaço sem cena pós créditos, reina a metalinguagem, usada por James Mangold ao mostrar comics na tela por diversas vezes, como um registro mítico de um herói que se esforçou para não deixar laços atrás de si. Mas estes laços, na trama, foram criados à força dos seus feitos. E, na vida real, a mitologia é a sequela da evolução (espantosa) de Hugh Jackman na pele deste semideus caído. Originalmente, em 1998, o ator selecionado para usar os ossos de adamantium era Dougray Scott, que saltou fora para lutar contra Tom Cruise em «Missão: Impossível 2», de John Woo. Melhor sorte teve Hugh Jackman e nós, que ganhamos um astro capaz de alcançar a dimensão de dor de um vigilante fadado ao desterro num mundo onde não só os seus poderes regeneram. Nada é mais autorregenrativo do que a intolerância, aqui disfarçada de racismo aos genes X e ao heroísmo.

Título Original: Logan Realização: James Mangold Elenco: Hugh Jackman, Patrick Stewart, Dafne Keen, Boyd Holbrook, Boyd Holbrook, Richard E. Grant Duração: 137 min. EUA, 2017

[Texto publicado originalmente na Revista Metropolis nº47, Março 2017]

https://www.youtube.com/watch?v=Div0iP65aZo
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