Cédric Kahn não tem compromissos com as telas de Cannes este ano, mas o seu trabalho como realizador em «O Caso Goldman» voltou a fazer eco pela Croisette dois anos após a sua passagem pelas telas da Quinzena de Cineastas. Citado na vinheta de abertura dessa mostra paralela à luta pela Palma de Ouro, a longa-metragem voltou a ganhar destaque na estância balnear e noutras latitudes em França com os aumentos de casos de antissemitismo no Velho Mundo.
Com 16 filmes num currículo paralelo de realização aberto em 1990, com a curta «Les Dernières Heures du Millénaire», Kahn consagrou-se definitivamente como um realizador de inquietudes autorais depois do êxito desse estonteante thriller de tribunal. «O Caso Goldman» é o exercício cinematográfico mais ousado da sua obra como cineasta, e é o que mais (e melhor) conversa com os engramas de tradição (religiosa) de «Não Deixeis Cair Em Tentação» («La Prière»), pelo qual foi indicado ao Urso de Ouro em 2018. São olhares sobre delinquência e a exclusão que gravitam no âmbito de uma identidade de fé. No filme de culto da década passada, tratava-se de um grupo de perseverança católica para jovens. O seu exercício narrativo dele passava pelas cartilhas do suspense, a marca identitária em questão é o judaísmo.
Aprendiz de edição na equipa de montagem de «Ao Sol de Satanás» (a Palma de Ouro de 1987), Kahn gosta de filmar histórias sob desencaixes numa França feroz a quem não é “normalizado”. O seu «Le Procès Goldman» é uma trama jurídica que parece um filme do Costa-Gavras de antigamente, nível de «Z» ou de «Estado de Sítio», mas feito hoje, com foco na intolerância. Parte de uma direção nervosa, que faz da narrativa uma panela de pressão. A forma como o guião – escrito por Kahn e por Nathalie Hertzberg – fala de racismo, a partir de práticas estatais de cunho antissemita, é uma abordagem mais do que necessária (e urgente) da exclusão. Aliás, diante do que se passou e do que se passa no recrudescimento da guerra em Israel, a produção se faz ver com outros (e mais urgentes) olhos geopolíticos.
O seu argumento parte de uma releitura do julgamento de Pierre Goldman (1944-1979), autor do livro “Souvenirs obscurs d’un Juif polonais né en France”. Nele, Kahn recria a feroz luta de Goldman para provar que não matou duas pessoas num roubo a uma farmácia que lhe foi imputado. Somos levados ao ano de 1976, centrados na corte do seu processo jurídico, que se descortina diante de nós numa secura extrema, numa abordagem de realismo extremo. O desempenho de Ariah Worthalter no papel principal, em estouros de raiva, humaniza a longa-metragem.
O maior acerto de Kahn é mostrar o ódio da polícia francesa em relação a Goldman, que após ter cometido dois roubos, foi acusado de ser assassino sem evidências fortes. O fato de ele ser judeu fez dele objeto de tipificação e violência. Por se tratar de um episódio histórico retórico, o cineasta procurou concentrar a narrativa na força da palavra, deixando os diálogos guiarem a forma com que a câmara registra indignações, perplexidades e injustiças.
Cannes segue até o dia 24 e três filmes seguem na dianteira das apostas: «Sirât», «O Agente Secreto» e «Nouvelle Vague».

